PorMarcondes Rosa de Sousa
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Um sonho! É o que ela diz querer me vender. Um sonho para casais, o que inclui um cruzeiro pelo Caribe e a promessa de noites inesquecíveis nos mais luxuosos hotéis de Miami, Orlando (nos Estados Unidos) e Buenos Aires (na Argentina). Um sonho, tornado iminente pela compra de uma simples cautela.
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Nada de armações. Ali, diante de mim, a comprovação de tudo. O sorteio das cautelas dar-se-á no próximo dia 13 de dezembro, às 20 horas, em um jantar a ser oferecido no Iate Clube de Fortaleza. Ela me mostra o prospecto de informações sobre o sorteio. Patrocinando e garantindo tudo, estava ali a Sociedade dos Amigos da Democracia, da qual a vendedora dizia-se não apenas membro como uma das fiadoras. Uma entidade sem fins lucrativos, que realizará o sorteio com o curioso e poético objetivo assim expresso: manter os amigos unidos e as portas da sociedade abertas para todo o mundo".
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A vendedora me fala do sonho ali posto à venda. Enquanto ela se perde nos sonhos que me tenta vender, confesso que minhas atenções se voltam mais para ela, a vendedora, E, por isso mesmo, termino por não me conter, abrindo-me num explosivo frouxo de riso. Explico-me. Eu já antevia essa visita. Só não esperava que o objeto da venda fosse um sonho (mesmo um sonho real, factível e assegurado aos vencedores). De outras vezes, havia sido igualmente visitado. Mas, nessas ocasiões, a vendedora conseguia me passar cautelas de carros velhos, jóias que dizia de família e, da última vez, de uma placa de ouro.
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Agora, era diferente. Quem diria! O prêmio do sorteio era um sonho. E sonhos por onde? Por um mundo bem diferente dos sonhos pregados, nas praças, pela vendedora às suas habituais platéias de excluídos: desta vez, nas praças, pelos ambientes e paisagens de um mundo capitalista e burguês. quem te viu, quem te vê!" - não me contenho, sorrindo.
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A vendedora, sentindo-se flagrada em sua contradição, desmancha-se, por sua vez, numa incontida gargalhada e justifica-se: "P’ra vocé ver aonde o aperto e a determinação de pagar as contas termina levando a gente!’. E aí discorremos, por longo tempo, sobre aonde, na vida pessoal, os percalços políticos terminam nos conduzindo.
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Na verdade, tem sido sempre assim. Após cada eleição, lá se vêm elas (Rosa e Maria) à cata dos amigos (sejam de seu círculo político ou não). Elas entram, de corpo e alma, em uma empreitada política. E vivem o sonho e a aventura de sua caminhada. Jamais se sentem derrotadas, conquistem ou não os cargos formais. Nessa aventura, gastam tudo o que têm e o que não têm. Ao fim de tudo, restam os pedaços de conta, pendurados por toda parte. Desta vez, conta-me Rosa, a coisa foi braba. Navegaram, solitárias, por uma via marginal, desamparadas do tradicional apoio dos demais partidos da esquerda. E, isso, no plano pessoal, custou-lhes caro.
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Numa campanha, de fato, tudo são gastos. E, por ironia, o que legalmente é gratuito (a propaganda pela televisão e o rádio) termina, na prática, sendo o mais caro. "È certo (explica-me Rosa) que tínhamos o tempo gratuito. Mas a televisão e o rádio não estão aí, ao vivo, à nossa disposição. Tivemos de contratar uma produtora para fazer os programas. E, aí, um aluguel de som aqui, uma viagem ali, somados aos gastos com a propaganda dita gratuita, ficou dependurada uma conta de mais de cem mil reais".
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"Vendemos tudo", diz-me Rosa num estranho ar de preocupação, mas de satisfação pessoal... Maria, segundo ela, já se desfez do carro, do computador e de outros objetos pessoais. Entrou, fundo e arriscadamente, no cheque-ouro e levantou empréstimos nos bancos, Tudo isso, sem muito horizonte à frente, já que em 31 de dezembro terá terminado o seu mandato de deputada federal e, em conseqüência, não terá mais vencimentos.
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Rosa, a vendedora de sonhos, me pede ajuda. Decido ajudá-las (a ela e Maria) apostando no sonho. Ela me pergunta por pessoas outras na Universidade. Digo-lhe onde encontrá-las. Ela quer mais, de nossa tradicional amizade. Insinua-me que posso ficar com uma dezena de cautelas: "Você pode passá-las aos seus amigos do PSDB - diz-me numa leve ironia. Retruco-lhe que meus amigos do PSDB não poderão dedicar-se aos devaneios de viajar em janeiro porque deverão estar no batente governamental, aqui ou em Brasília. Compro eu, porque em janeiro deverei tirar férias, estando portanto com disposição e tempo para embarcar em sonhos...
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Ela se despede, entre sorrisos. Uma professora entra-me na sala. E me pergunta, surpresa, o porquê de minha ajuda a Rosa e Maria. Pergunto-lhe se ela quer que eu comece a responder do ponto de vista político ou do psicológico. A professora, sem entender, dá de ombros, como a me dizer: tanto faz.
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Começo lhe dizendo que, pessoalmente, me fascina o divergente de mim. E, brincando, afirmo que gosto tanto do diferente que casei com uma mulher. Se gostasse do igual a mim, deveria achar melhor viver com uma pessoa do mesmo sexo. Para mim, o oposto a mim me completa. E, cercando-me do diferente de mim, tento ser um equilíbrio plural de minhas próprias divergências. Por isso, ao ocupar qualquer cargo público, gosto de escolher pessoas de formação dilferente da minha, para o trabalho a meu lado, Nenhum deles de minha mesma formação. Dessa forma, penso, termino por enriquecer minha visão.
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Sob a perspectiva política, creio, como insinua Maquiavel, desde 1536, que, entre a oposição e a situação, há uma certa cumplicidade. A oposição joga um papel fundamental no sentido da sustentabilidade da situação. E, para mim, Rosa e Maria, são um pouco o símbolo disso. Não votei em nenhuma das duas. Meu voto para Governador e para o Senado foi público. Votei em Tasso (fiz campanha) e, nos jornais, assinei manifesto de solidariedade e apoio a Sérgio Machado e Lúcio Alcântara.
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Mas, de Maria e de Rosa, não me neguei a ficar com alguns de seus bônus. E, dessa forma, ajudei-as. Por quê? Porque, primeiro, elas são um pedaço esquecido de mim. São meu lado romântico, aventureiro, inconseqüente, utópico, quixotesco, anárquico até. E me sinto satisfeito pagando um tributo a esse lado, necessário para o equilíbrio de mim.
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Politicamente, meus sonhos são outros, em relação aos de Rosa e Maria. Elas acreditam na democracia direta e eu, ao contrário, sou parlamentarista. Minha crença é, portanto, naquilo que elas querem acabar (o parlamento). Elas acreditam na revolução armada. Eu sou de paz, da razão e do voto. Sua utopia é um socialismo de um horizonte distante. Sou mais pragmático.
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Acredito no sonho possível do equilíbrio social-democrático. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Sou pela síntese do que a humanidade conseguiu de bom no socialismo e no capitalismo. Sou, finalmente, contra o lado mau dos dois caminhos.
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Mas, em meu sonho, cabem os sonhos de Rosa e Maria. Na sociedade que imagino, há lugar e função para elas. Em minha utopia, os sonhos mais extremos são salutares e imprescindíveis. E, nesse mundo plural, as mais
diversas tribos hão de ter seus dialetos, seus deuses, suas crenças, pois democracia, para mim, mais que o império da maioria é a convivência saudável das minorias.
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Rosa e Maria são a expressão e canal dos excluídos, São os necessários camelôs dos muitos que habitam nossas praças, favelas e ruas. Outro dia, Tasso, citando Nelson Rodrigues, disse que a unanimidade é burra. Pois bem, em nosso meio político, Rosa e Maria podem simbolizar a porção necessária para que tenhamos uma sociedade inteligente.
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Rosa e Maria, as vendedoras de sonhos, estão aí às voltas com uma conta de cem mil reais a pagar. Essa conta não é só delas. A mim, como pessoa, faz-me bem, a meu pluralismo, ajudar a saldar essa dívida: A mim,. cidadão, sinto-me responsável por contribuir com um pequeno quinhão. Afinal, posso até não gostar. Mas elas cumprem uma função e são necessárias em nossa sociedade. Por isso, pago, com prazer, minha cota.
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E você? Você pode não ter nada a ver com Maria ou com Rosa. Pode até não gostar nada delas. E se confessar integrante do percentual de pessoas que a elas rejeita ou até delas tem raiva. Mas pense bem. Elas podem ser o seu lado escondido, a sua face oculta, como, de mim, são o pedaço romântico que perdi, lá pelos anos 60... Se você pensar assim, não precisa explicações maiores, como as que tento dar a você. Apenas chame sua companheira ou seu companheiro e lhe proponha: "Que tal a gente apelar para a sorte e, quem sabe, viver o sonho de algumas noites inesquecíveis em Miami, Orlando ou Buenos Aires?"
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Fará bem a você. Fará bem à vitalidade e à maturidade de nossa democracia!... E, se assim for, todos os anônimos camelôs de sonhos, que habitam a nossa sociedade, sensibilizados, lhe agradecerão.
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(Em tributo ao Prof. Raimundo Alberto Normando, então vice-reitor da Universidade Federal do Ceará e falecido nas festas de ano passado, que apesar de conhecido por suas posturas tidas por muitos como conservadoras, sensibilizou-se com a crônica, telefonando-me e pedindo a mim que lhe enviasse cautelas. Ele, a mim, argumentou que se sentia no dever de às "vendedoras de sonhos" pagar o tributo de que se sentia devedor).
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Marcondes Rosa de Sousa, advogado, é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECe). É uma das maiores autoridades em educação do Brasil. Ex-presidente do Conselho de Educação do Ceará e do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação, é Colunista do jornal " O Povo ", onde mantém seus artigos quinzenais.