O FANTASMA DA REPARTIÇÃO
Por
Jean Kleber Mattos
Aconteceu em Brasília em meados dos anos
1970s.
Na minha repartição havia um colega bem
falante, culto, risonho e bastante eficiente. Morava em “república” com outros
colegas.
Numa certa manhã não veio trabalhar. Os
colegas do apartamento confirmaram que ele saíra na noite anterior e ainda não
havia retornado à residência.
Decorrido dois dias sem notícias, nosso
chefe solicitou à Secretaria de Segurança uma atenção especial ao caso. A
polícia entrou na “republica” e recolheu alguns pertences do desaparecido,
inclusive uma agenda. Os colegas da secção e mais alguns cidadãos cujos nomes
estavam na agenda foram chamados a depor. O veículo do colega havia sido
encontrado abandonado ao lado de um edifício chamado CASEB com uma calça, uma
camisa e uma cueca sujos de sangue.
Numa varredura nos cerrados do entorno a
polícia encontrou oito corpos. A mãe do desaparecido foi trazida do Nordeste para
a devida identificação. Enquanto isso, o laboratório da polícia apresentava um
laudo segundo o qual o sangue encontrado nas vestes não era humano.
Finalmente a roupa de um dos corpos, já
em avançado estado de decomposição foi identificada pela mãe do rapaz, o
enterro foi providenciado e o caso foi encerrado. Meu colega fora assassinado.
Uma missa de “réquiem” foi celebrada e
os familiares voltaram ao Nordeste. Todos nós estávamos chocados com a
tragédia.
Vinte anos depois estava eu no Jardim
Botânico de Brasília para proferir uma palestra, quando, entre os presentes,
identifiquei uma colega dos velhos tempos, D. Tânia. Não demorou muito e já
conversávamos sobre os ocorridos dos anos 1970s. Mencionei então a tragédia do
colega desaparecido. Ela sorriu e comentou:
- Ele está vivo !
Vendo minha cara de espanto, Tânia
continuou:
- Aquela morte foi uma simulação. Ele
precisava assumir outra identidade, outro sexo enfim, mas temia pelas
dificuldades e pelas consequências. Resolveu então simular a própria morte e
fugir para fora do país, tendo embarcado no dia do desaparecimento, quando a
polícia ainda não tinha sido acionada. Enquanto os amigos, a família e a
polícia lidavam com um possível assassinato, ele empreendia a fuga.
- Sou confidente dele – rebateu Tânia –
esse é um segredo que prometi guardar, mas agora ele retornou ao Brasil com
cidadania e identidade estrangeiras. O colega que nós conhecemos naquela época é
hoje apenas um fantasma...
O PERSEGUIDO POLÍTICO
Por
Jean Kleber Mattos
Véspera de eleição para diretor da
faculdade na Universidade de Brasília em 2002. Meu amigo Xavier comentava
comigo sobre um fato recente. Ele havia dito a um colega na reitoria, que
gostaria de indicar meu nome como candidato. Ao saber de sua intenção, o colega
o advertira para o fato de que eu seria um radical de esquerda. Ri-me do fato e
imediatamente reportei-me ao passado, segundo semestre de 1975.
Naquela época eu estava trabalhando na
Embrapa, no Centro de Pesquisas Agropecuárias dos Cerrados (hoje Embrapa
Cerrados). Adorava meu novo emprego. Com a desativação de meu departamento na
Fundação Zoobotânica eu havia sido absorvido pela Empresa.
O Centro estava sendo implantado. Eu
fazia parte da equipe de implantação. Tudo novo, salário dobrado e apartamento
funcional. Dava-me bem com os colegas e auxiliava diretamente o diretor técnico
nos preparativos do Simpósio Brasileiro dos Cerrados. Sentia-me muitíssimo bem.
Finalmente uma situação favorável e boas condições de trabalho.
Durante cinco meses havíamos trabalhado
na instalação dos laboratórios e elaborado os projetos de ampliação, uma vez
que o Centro aproveitava as instalações de uma fazenda experimental do extinto
DNPEA (Departamento Nacional de Pesquisas Agropecuárias).
Numa certa manhã o chefe administrativo
mandou me chamar. Ao entrar na sala percebi que estava com um ar grave. Abatido
mesmo. Pediu-me que sentasse em uma cadeira. Geralmente quando o chefe pede para
a gente sentar numa cadeira para uma conversa a dois, as notícias não são boas.
Mostrou-me um envelope e disse:
-O “general” mandou uma carta dizendo que você está na
lista negra da ditadura militar.
O “general” significava Serviço Nacional
de Informações, o famoso SNI. Foi como se eu já esperasse. Não me sensibilizei
de imediato. Apenas acenei afirmativamente com a cabeça.
E ele completou:
- Infelizmente vamos ter que demitir
você. A empresa pagará todos os direitos trabalhistas, pois será por injusta causa.
Eu realmente lamento muito, Jean!
Eu já havia recebido os direitos
trabalhistas da Fundação Zoobotânica por ocasião da desativação do Departamento
de Pesquisas. Receberia então mais uma “graninha”, desta vez da Embrapa. Com o
montante eu construí uma casinha para meus pais em Fortaleza.
A notícia causou surpresa em todos os
meus colegas. Durante os oito anos em que eu trabalhara em Brasília, em nenhum
momento eu havia me manifestado em público sobre a ditadura militar. Eduardo
Morales resumiu sua surpresa com uma frase:
- Subversivo, ele? Mas ele só conta
piada...
O fato é que eu tinha uma ficha vermelha
no SNI, por conta das atividades políticas ocorridas de 1964 a 1966, quando eu
era graduando de agronomia em Fortaleza e em Recife. Eu havia sido membro da JUC
(Juventude Universitária Católica). A “Juventude” era considerada pelos
militares como uma das portas de entrada para a Ação Popular, um partido
socialista clandestino que era reprimido com grande violência. Entre meus amigos
mortos pela ditadura incluíam-se o padre Henrique, o Rui Frasão e o frei Tito.
Eu era infinitamente menor que eles mas privara de sua amizade e
companheirismo. Estava portanto “na lista” e por sorte estava vivo.
Mesmo antes de 1968, o ano mais negro da
repressão com o Ato Institucional número 5, eu já havia decidido submergir. Em
1966, ano de minha graduação, eu prometera a mim mesmo afastar-me dos
movimentos políticos e dedicar-me unicamente à tarefa de investir na minha
capacitação técnica.
Quando eu concluí o mestrado em
microbiologia dos solos em Recife, no instituto comandado por Chaves Batista,
considerei que havia realizado o grande sonho da minha vida. Finalmente
tornara-me um microbiologista. A partir de então, meu objetivo
era unicamente o aperfeiçoamento técnico. Estudar e estudar. Desligar-me
das atividades políticas tornara-se uma prioridade. Superar o sectarismo e o
radicalismo. Um desafio.
Assustava-me grandemente a violência que
marcava aquele período. Os guerrilheiros urbanos sequestravam embaixadores e os
trocavam por companheiros presos. Na operação de sequestro geralmente morriam
os seguranças do político. Nos porões da ditadura, a tortura campeava, com
prisioneiros sendo mortos no cárcere. Alguns companheiros eram presos ou sequestrados
na própria casa ou no emprego. Lembro-me de um que foi preso durante a
cerimônia do próprio casamento. Alguns eram encontrados mortos em plena via
pública após o sequestro, como fora o caso do padre Henrique em Recife.
Submergir para sobreviver era portanto o meu lema
ao final dos anos 60. Inserir-me e contribuir para o desenvolvimento econômico
de meu país, mesmo dentro de um modelo de agricultura ainda questionável. Tudo
bem, pensei, confraternizemo-nos e trabalhemos juntos. Aprendamos junto e
promovamos as mudanças lentamente, com amadurecimento e sem queimar etapas.
Comecei então a namorar o sistema. A
procurar suas virtudes. A sorrir para ele. Tentativa sincera de sedução e
obtenção de confiança, sem subterfúgios ou traições. A busca da paz. O
exercício durou dez anos.
Tanto tempo de bom comportamento e nada.
Tão logo a velha ficha de dez anos caiu, o general me mandou para o espaço. Não
fui correspondido em minha tentativa de seduzir a ditadura. Para ela, eu não
era confiável. Também não tinha padrinhos importantes que tivessem acompanhado
a minha “regeneração”. Estava banido do paraíso.
Demorei alguns dias para desocupar o apartamento
funcional. Não se encontram imóveis para alugar tipo “da noite para o dia”.
Quando finalmente fui entregar as chaves do apartamento à Embrapa, o
funcionário informou-me que eu excedera em dez dias (contando da data de minha
demissão), o tempo de ocupação autorizada do imóvel. Teria que pagar os dez
dias excedentes à Embrapa, a preço de mercado. Era um “baita” apartamento,
situado na Asa Sul. Os dez dias custaram-me uma boa grana e eu ainda estava
desempregado. Além disso, minha filha mais velha nascera recente e eu estava
separado da mulher, que por coincidência atuava naquele momento como digitadora
terceirizada, na própria Embrapa. A situação tinha ingredientes cruéis, mas a
tragédia não era das maiores.
Somente anos mais tarde tomei
conhecimento do que ocorrera nos bastidores. Um amigo da Embrapa contou-me
sobre suas tentativas frustradas, dele e de outros, para impedir a minha
demissão.
Na Fundação Zoobotânica eu também fizera
amigos. Lá, eu era politicamente confiável. Além disso, a Fundação era
estadual, o que facilitava as coisas. Meus amigos Francisco Valente e Silvio
Brekenfeld facilitaram os trâmites e o secretário de agricultura Pedro Dantas
autorizou meu regresso. Voltei para a Fundação ganhando a metade do salário da
Embrapa e sem apartamento funcional mas... dando graças a Deus!
Pouco tempo depois, um outro amigo, o
Orizomarden, chefe do novo departamento de pesquisas, comunicou-me que, entre
outras funções na Fundação, eu seria o responsável técnico da Granja do Riacho
Fundo, unidade situada ao lado de uma das residências do presidente da república,
General Ernesto Geisel. Precedera-me no cargo o agrônomo Daniel Marques, que no
futuro seria renomado político em Brasília.
Ora, a segurança do presidente
cadastrava todos os que trabalhavam na Granja e investigavam seus antecedentes.
Ficavam, portanto, “de olho” no vizinho !. Contei ao Orizomarden meu episódio
na Embrapa. Ele desistiu imediatamente de minha designação. Eu podia trabalhar
na Fundação Zoobotânica, mas longe do presidente Geisel. Tudo bem.
Naquele momento eu sequer imaginava que
meu próximo empregador seria a Universidade de Brasília. Com o capitão Azevedo
e tudo...
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