Suaveolens

Este blog foi criado por um cearense apaixonado por plantas medicinais e por sua terra natal. O título Suaveolens é uma homenagem a Hyptis suaveolens uma planta medicinal e cheirosa chamada Bamburral no Ceará, e Hortelã do Mato em Brasília. Consultora Técnica: VANESSA DA SILVA MATTOS

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Local: Brasília, Distrito Federal, Brazil

Cearense, nascido em Fortaleza, no Ceará. Criado em Ipueiras, no mesmo estado até os oito anos. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco, na Universidade Rural. Obteve o título de Mestre em Microbiologia dos Solos pelo Instituto de Micologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também obteve o Mestrado e o Doutorado em Fitopatologia pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisador colaborador da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.

20.3.18

MEMÓRIAS CAPÍTULO 9 : A FÉ DO POVO E OS CAMINHOS DA VIDA



IPUEIRAS DE FÉ

Por
Jean Kleber Mattos

O primeiro casamento religioso que eu vi, foi em Ipueiras. Final dos anos quarenta, século vinte. Foi o casamento de meu padrinho de crisma, José Costa Matos com a ipueirense Alderi Moreira. Quando se é criança vê-se tudo maior, daí foi a cerimônia mais grandiosa que testemunhei nesta vida. Bonita e poderosa. Paramentos de gala com as cores do Vaticano. Fios d´ouro à vontade. Padre Francisco Correia Lima, o vigário, oficiou.
A fumaça branca emanada do turíbulo embalado pelo acólito em movimentos pendulares, dava um toque mágico ao ambiente do altar-mor. Se bem me lembro, o acólito vestia uma batina vermelha. Por sobre ela, uma sobrepeliz branca, com mangas rendadas. Também uma pala vermelha. Meus conhecimentos sobre liturgia católica são escassos, mas acho que era isso.
Lembro-me de umas flores brancas artificiais muito bonitas que surgiam no altar principal em dias de festa. Adonias era o sacristão. Acendia e apagava os candelabros. Havia uns cilindros brancos que pareciam velas. Não eram. Cotos de vela eram habilmente encaixados num depósito no ápice da peça. Estes sim, velas de parafina. O acendedor era uma peça metálica na extremidade de uma vara. Também servia para apagar. Tinha um pavio e um abafador em forma de cone metálico. Tudo na mesma peça.
Aquilo tudo me encantava. Queria ser padre. "Celebrava" missas em casa. Procurava imitar os movimentos do padre. Pequenas bolachas tipo "Ceci" faziam as vezes de hóstia, para delícia dos colegas. A comunhão era sem dúvida o momento mais aguardado.
Lembro-me de minha primeira comunhão. Meus pais envolveram o Educandário na celebração. Ofereceram um café da manhã a todos os alunos. Pediram-lhes que comparecessem vestidos de branco. Os que já haviam feito a primeira comunhão comungaram comigo. Depois da missa, o café "apoteótico" na sede da escola. Todos haviam sido convidados. Uma festa para ninguém esquecer.
E o jejum para a comunhão?. Às vezes batia a hipoglicemia. As velas pareciam tremular um pouco demais. Leve desmaio. "Agonia", dizia-se. Recuperação rápida. Eu gostava da cerimônia de "Te Deum", realizada sempre ao anoitecer. É rápida e bonita, bem ao gosto de uma criança. O ouro do cálice, a custódia dourada e radiante, o "design" do sacrário. Um encanto!
Eu gostaria de acolitar, mas era muito criança. Frota Neto, Nemésio, Marcondes e mais alguns, que eram maiores, já acolitavam a missa em latim. Meu amigo Nemésio, filho de "seu" Edmundo, ainda deu-me algumas lições, mas não adiantou:
- Introibo ad altare Dei...!
- ........!
- Qual é a resposta?
- Esqueci...
- Ad Deum qui lætificat juventutem meam!
Minha avó, D. Luizinha, com desvelo, confeccionou uns paramentos de cor verde, adequados ao meu tamanho. Fez-me a surpresa aproveitando um regresso meu de Fortaleza. Inesquecível.
Festas dos santos com quermesses, leilões e queima de fogos. Lembro-me de um avião artesanal que nas noites de festa corria num fio, propelido por pólvora. Ele partia da torre da igreja e ao chegar próximo ao solo, explodia. Neste momento, na Praça da Matriz, ficávamos com a respiração suspensa. Numa noite, a explosão retardou e um colega meu tentou segurar o brinquedo que então explodiu. Queimadura grave. Danos às mãos.
O menino, filho de "seu" Gonçalo Ximenes, teria que esperar a lenta cicatrização com a mão enfaixada. Foi, durante algum tempo, o herói da meninada.
E as procissões? Andores enfeitados com flores diversas e aspargo ornamental. A impressionante rigidez das imagens. Filas de fiéis caminhantes, alguns exibindo as fitas identificadores das congregações religiosas: Marianos e Filhas de Maria em destaque. Tudo isso ao som dos hinos, contando com a harmonia da banda de música local: "Dá nossa fé oh Virgem...o brado abençoai...Queremos Deus...Que é nosso Rei...Queremos Deus...Que é nosso Pai..."
Havia um hino de beleza ímpar, que era entoado na hora da comunhão. Aí, destaque para a professora Diana ao órgão (chamado à época de "harmônio"): 
"Jesus nosso Pai...
Jesus Redentor...
Te adoramos...
Na Eucaristia...
Jesus de Maria...
Jesus Rei de amor!" 
Este maravilhoso hinário ainda hoje me inspira, muito embora não seja eu assíduo à Igreja Católica atualmente.
O escritor e cronista Carlos Heitor Cony, que se dizia ateu, volta e meia era visto entre os fiéis, participando de missas no Rio de Janeiro. Ele também se encantava com a beleza da liturgia católica, sobretudo com os hinos.
Somente uma cerimônia me assustava. A missa de requiem. Paramentos negros com realces brancos. O contraste total. Atmosfera pesada. Perda e sofrimento. Na véspera, o sino em toque compassado anunciando a jornada do féretro. "A misericórdia da Igreja", conforme enfatizaria no futuro, o dramaturgo Nelson Rodrigues.Quase sempre aos domingos eu via, à porta da igreja, um ou outro "anjinho" em seu pequeno esquife de cor azul clara, ornamentado com flores de "Jasmim de Caiena". Cerimônia fúnebre. Os altos índices de mortalidade infantil refletiam o subdesenvolvimento da região. Impossível falar minimamente sobre a Igreja Católica na Ipueiras daqueles idos, sem mencionar as ladainhas vespertinas que se seguiam à reza do terço. Tudo em latim. Público predominantemente feminino. As Filhas de Maria, as donas de casa e suas crianças.
Sancta Maria,
- Ora pro nobis.
...Sancta Dei Genitrix, Sancta Virgo virginum, Mater Christi, Mater divinæ gratiæ, Mater purissima, Mater castissima...Lembro-me de uma professora, Zélia, amiga de minha mãe, coordenando a reza.
Quando estive em Ipueiras em 1962, com dezesseis anos, ouvi, de viva voz, em presença de minha mãe, D. Mundita, e da prima Carlinda, o relato fantástico de dois ipueirenses miraculados.
Madrugada do dia nove de novembro de 1953. Começavam os preparativos para a partida da imagem peregrina da Virgem de Fátima, vinda de Portugal e que visitava Ipueiras. Os fiéis gritavam "vivas" a Nossa Senhora. De repente um "viva" diferente se ouviu. Era Vicente, o padeiro mudo de nascença, que acabara de aclamar a santa. Bem perto dali, ainda na Praça da Matriz, bem ao lado da igreja, a mãe da catequista Isa Catunda, quase cega de catarata, disse à filha que iria para casa, que era próxima. A filha aquiesceu e disse: "eu levo a senhora". "Não precisa", respondeu a mãe: "estou vendo o caminho."
Os milagres foram relatados mais tarde no livro "Vendo a Vida Passar" de Padre Francisco Correia Lima, com trechos reproduzidos no livro "Quase" de Frota Neto, e por Marcondes Rosa, em crônica, no site de Ipueiras.
Em regozijo, Ipueiras fez construir na rua General Sampaio, em frente à casa do padre vigário, um arco, que Frota Neto em seu livro "Quase" chamou de Arco do Triunfo de N.S. de Fátima. O monumento é hoje de alvenaria, e feito, segundo Bérgson Frota em artigo sobre o tema no blog de Ipueiras, pelo mesmo arquiteto que fez o Cristo de Ipueiras, Pedro Frutuoso. A obra foi concluída em 1954.
O arco representa o triunfo da fé do povo de Ipueiras !



TITO, O ZAGUEIRO

Por
Jean Kleber Mattos


O cenário é um pequeno campo de futebol num terreno lateral à Igreja do Cristo Rei, em Fortaleza, no Ceará, sede da Congregação Mariana. Ano de 1958. Times da categoria infantil disputam um campeonato. Um deles denomina-se Ceará. O uniforme é alvinegro como o da famosa equipe de profissionais. Tenho 13 anos. Jogo no time. Sou o goleiro. À minha direita durante todo o campeonato, um zagueiro se desdobra como penúltima barreira. A bola que passar por ele sou obrigado a pegar. Pouca coisa passa, felizmente. O zagueiro é bom. Chama-se Tito. No ataque, nossos companheiros fazem bem o seu papel. Ao final do torneio fomos campeões.
Mas o zagueiro chama a atenção de todos. Inteligência e destemor. Ao partir sobre o atacante o fazia com o corpo levemente inclinado para traz. Se atingido por uma bolada, a inclinação diminuiria os danos físicos, além de modificar a trajetória da bola que, resvalando, poderia escapar da grande área.
Futebol é esporte bruto e a canela sofre. Um flagrante de coragem: por vezes o zagueiro jogava com a canela enfaixada. Mas jogava. E o fazia com o mesmo denodo. Eu observava curioso aquela natureza heroica.
O ambiente era religioso. Uma agremiação mariana e um coral eclesial. Eu atuava nos dois. Um ano após meu ingresso no coral, Tito nele ingressou. Já lá estavam seus irmãos Ildefonso e Jorge. Coral misto. Rapazes e moças. Cantávamos nas missas dominicais, nos casamentos e nas celebrações religiosas mais solenes. Às vezes participávamos de recitais no Teatro José de Alencar e na televisão.
Veio o vestibular. Entrei na faculdade. Uma vez lá, fui nucleado pela Juventude Universitária Católica (JUC), da igreja progressista (alguns diziam esquerdista). Tito ainda estava no segundo grau, mas já optara pela Juventude Estudantil Católica (JEC). Uma experiência diferente. O senso crítico era o apanágio daquelas “Juventudes”.
Adolescentes que éramos, preferíamos ter como namoradas as militantes do movimento. Comunhão de idéias e ideais. Um dia, conversando longamente com minha namorada da época, ela referiu-se ao fato de, algum tempo antes, Tito ter-lhe proposto namoro. “Qual foi sua resposta?”-perguntei. “Pedi um tempo”, disse-me ela. Menina sensível, disse-me que percebera uma aura especial no candidato, como se ele estivesse predestinado à vida monástica.
Dois anos mais tarde, muda o cenário. Estamos em Recife, na rua dos Coelhos, vizinhança do Hospital Pedro II. Moro na Casa dos Permanentes, um pensionato destinado a membros de equipes de direção da Ação Católica de âmbito regional. Pertenço à equipe regional da JUC-Nordeste. Na mesma casa residem os permanentes da JEC regional. Denis, de Alagoas, Luiz, do Rio Grande do Norte e Tito, do Ceará.
Compartilhamos todos o mesmo dormitório. Ainda estou cursando agronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Uma vida cheia de reuniões, orações, leituras e relatórios. Também sobressaltos, pois corre o ano de 1965, em plena ditadura militar, e nós, tidos como esquerdistas perigosos, estávamos fadados pelo menos à prisão.
Sempre abominei a violência desde que me tive por gente. Optei na época por uma linha de meditação com mais reflexão e menos provocação. Eu tinha a impressão de que meus colegas nada temiam de tantos riscos que optavam por correr. Passeatas, ações secretas, atuação em centros acadêmicos aguerridos, enfim, quase todos em ansioso ritmo de enfrentamento da ditadura.
Eu temia por minha sorte. Medo de ser preso ou morto. Preferia, portanto, as ações mais institucionais do tipo padrão, como, por exemplo, seguir o genial Dom Helder Câmara em seu trabalho pastoral, de natureza mais diplomática. À noite, ao invés de ler as geografias de Josué de Castro eu preferia conhecer a vida de Charles de Foucault, missionário na África, que foi considerado digno de ser chamado, por sua caridade, "Irmão Universal".
Um dia surpreendi meu colega Tito com meu livro nas mãos, em atenta leitura. Pediu-me o livro por empréstimo. Obviamente emprestei-o. Daquele dia em diante aquele livro passou a ser o tal da cabeceira do Tito. Findou que dei-o de presente. Ele lia e anotava comentários no próprio livro.
Veio minha formatura em junho de 1966. Deixei a JUC e a Casa dos Permanentes e segui para a pós-graduação e para a vida profissional.
Somente dois anos depois, já em Brasília, voltei a ter notícias do Tito. Ele optara pela vida monástica. Seria Dominicano.


+++

NOTA: Tito de Alencar Lima, o "Tito" dessa narrativa, viria a ser preso durante o regime militar que vigorou de 1964 até 1985 no Brasil. Torturado, junto com outros dominicanos, conforme se pode ver no filme "Batismo de Sangue", faleceu algum tempo depois na França, vítima de suicídio.

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