IPUEIRAS DE FÉ
Por
Jean Kleber Mattos
O primeiro casamento
religioso que eu vi, foi em Ipueiras. Final dos anos quarenta, século vinte.
Foi o casamento de meu padrinho de crisma, José Costa Matos com a ipueirense
Alderi Moreira. Quando se é criança vê-se tudo maior, daí foi a cerimônia mais
grandiosa que testemunhei nesta vida. Bonita e poderosa. Paramentos de gala com
as cores do Vaticano. Fios d´ouro à vontade. Padre Francisco Correia Lima, o
vigário, oficiou.
A fumaça branca emanada do turíbulo embalado pelo acólito em
movimentos pendulares, dava um toque mágico ao ambiente do altar-mor. Se bem me
lembro, o acólito vestia uma batina vermelha. Por sobre ela, uma sobrepeliz
branca, com mangas rendadas. Também uma pala vermelha. Meus conhecimentos sobre
liturgia católica são escassos, mas acho que era isso.
Lembro-me de umas flores brancas artificiais muito bonitas que
surgiam no altar principal em dias de festa. Adonias era o sacristão. Acendia e
apagava os candelabros. Havia uns cilindros brancos que pareciam velas. Não
eram. Cotos de vela eram habilmente encaixados num depósito no ápice da peça.
Estes sim, velas de parafina. O acendedor era uma peça metálica na extremidade
de uma vara. Também servia para apagar. Tinha um pavio e um abafador em forma
de cone metálico. Tudo na mesma peça.
Aquilo tudo me encantava. Queria ser padre. "Celebrava"
missas em casa. Procurava imitar os movimentos do padre. Pequenas bolachas tipo
"Ceci" faziam as vezes de hóstia, para delícia dos colegas. A
comunhão era sem dúvida o momento mais aguardado.
Lembro-me de minha primeira comunhão. Meus pais envolveram o
Educandário na celebração. Ofereceram um café da manhã a todos os alunos.
Pediram-lhes que comparecessem vestidos de branco. Os que já haviam feito a
primeira comunhão comungaram comigo. Depois da missa, o café
"apoteótico" na sede da escola. Todos haviam sido convidados. Uma
festa para ninguém esquecer.
E o jejum para a comunhão?. Às vezes batia a hipoglicemia. As
velas pareciam tremular um pouco demais. Leve desmaio. "Agonia",
dizia-se. Recuperação rápida. Eu gostava da cerimônia de "Te Deum",
realizada sempre ao anoitecer. É rápida e bonita, bem ao gosto de uma criança.
O ouro do cálice, a custódia dourada e radiante, o "design" do
sacrário. Um encanto!
Eu gostaria de acolitar, mas
era muito criança. Frota Neto, Nemésio, Marcondes e mais alguns, que eram
maiores, já acolitavam a missa em latim. Meu amigo Nemésio, filho de
"seu" Edmundo, ainda deu-me algumas lições, mas não adiantou:
- Introibo ad altare
Dei...!
- ........!
- Qual é a resposta?
- Esqueci...
- Ad Deum qui lætificat
juventutem meam!
Minha avó, D. Luizinha,
com desvelo, confeccionou uns paramentos de cor verde, adequados ao meu
tamanho. Fez-me a surpresa aproveitando um regresso meu de Fortaleza.
Inesquecível.
Festas dos santos com quermesses, leilões e queima de fogos.
Lembro-me de um avião artesanal que nas noites de festa corria num fio,
propelido por pólvora. Ele partia da torre da igreja e ao chegar próximo ao
solo, explodia. Neste momento, na Praça da Matriz, ficávamos com a respiração
suspensa. Numa noite, a explosão retardou e um colega meu tentou segurar o
brinquedo que então explodiu. Queimadura grave. Danos às mãos.
O menino, filho de "seu" Gonçalo Ximenes, teria que
esperar a lenta cicatrização com a mão enfaixada. Foi, durante algum tempo, o
herói da meninada.
E as procissões? Andores enfeitados com flores diversas e aspargo
ornamental. A impressionante rigidez das imagens. Filas de fiéis caminhantes,
alguns exibindo as fitas identificadores das congregações religiosas: Marianos
e Filhas de Maria em destaque. Tudo isso ao som dos hinos, contando com a
harmonia da banda de música local: "Dá nossa fé oh Virgem...o brado
abençoai...Queremos Deus...Que é nosso Rei...Queremos Deus...Que é nosso
Pai..."
Havia um hino de beleza ímpar, que era entoado na hora da comunhão.
Aí, destaque para a professora Diana ao órgão (chamado à época de "harmônio"):
"Jesus nosso
Pai...
Jesus Redentor...
Te adoramos...
Na Eucaristia...
Jesus de Maria...
Jesus Rei
de amor!"
Este maravilhoso hinário ainda hoje me inspira, muito embora não
seja eu assíduo à Igreja Católica atualmente.
O escritor e cronista Carlos Heitor Cony, que se dizia ateu, volta e
meia era visto entre os fiéis, participando de missas no Rio de Janeiro. Ele
também se encantava com a beleza da liturgia católica, sobretudo com os hinos.
Somente uma cerimônia me assustava. A missa de requiem. Paramentos negros
com realces brancos. O contraste total. Atmosfera pesada. Perda e sofrimento.
Na véspera, o sino em toque compassado anunciando a jornada do féretro. "A
misericórdia da Igreja", conforme enfatizaria no futuro, o dramaturgo Nelson Rodrigues.Quase
sempre aos domingos eu via, à porta da igreja, um ou outro "anjinho"
em seu pequeno esquife de cor azul clara, ornamentado com flores de
"Jasmim de Caiena". Cerimônia fúnebre. Os altos índices de
mortalidade infantil refletiam o subdesenvolvimento da região. Impossível falar
minimamente sobre a Igreja Católica na Ipueiras daqueles idos, sem mencionar as
ladainhas vespertinas que se seguiam à reza do terço. Tudo em latim. Público
predominantemente feminino. As Filhas de Maria, as donas de casa e suas
crianças.
- Sancta Maria,
- Ora pro nobis.
...Sancta Dei Genitrix,
Sancta Virgo virginum, Mater Christi, Mater divinæ gratiæ, Mater purissima,
Mater castissima...Lembro-me de uma professora, Zélia, amiga de minha mãe,
coordenando a reza.
Quando estive em Ipueiras em 1962, com dezesseis anos, ouvi, de
viva voz, em presença de minha mãe, D. Mundita, e da prima Carlinda, o relato
fantástico de dois ipueirenses miraculados.
Madrugada do dia nove de novembro de 1953. Começavam os
preparativos para a partida da imagem peregrina da Virgem de Fátima, vinda de
Portugal e que visitava Ipueiras. Os fiéis gritavam "vivas" a Nossa
Senhora. De repente um "viva" diferente se ouviu. Era Vicente, o
padeiro mudo de nascença, que acabara de aclamar a santa. Bem perto dali, ainda na Praça da
Matriz, bem ao lado da igreja, a mãe da catequista Isa Catunda, quase cega de
catarata, disse à filha que iria para casa, que era próxima. A filha aquiesceu
e disse: "eu levo a senhora". "Não precisa", respondeu a mãe:
"estou vendo o caminho."
Os milagres foram relatados mais tarde no livro "Vendo a Vida
Passar" de Padre Francisco Correia Lima, com trechos reproduzidos no livro
"Quase" de Frota Neto, e por Marcondes Rosa, em crônica, no site de
Ipueiras.
Em regozijo, Ipueiras fez construir na rua General Sampaio, em
frente à casa do padre vigário, um arco, que Frota Neto em seu livro
"Quase" chamou de Arco do Triunfo de N.S. de Fátima. O monumento é
hoje de alvenaria, e feito, segundo Bérgson Frota em artigo sobre o tema no
blog de Ipueiras, pelo mesmo arquiteto que fez o Cristo de Ipueiras, Pedro
Frutuoso. A obra foi concluída em 1954.
O arco representa o
triunfo da fé do povo de Ipueiras !
TITO, O ZAGUEIRO
Por
Jean Kleber Mattos
O cenário é um pequeno campo de futebol num terreno
lateral à Igreja do Cristo Rei, em Fortaleza, no Ceará, sede da Congregação
Mariana. Ano de 1958. Times da categoria infantil disputam um campeonato. Um
deles denomina-se Ceará. O uniforme é alvinegro como o da famosa equipe de
profissionais. Tenho 13 anos. Jogo no time. Sou o goleiro. À minha direita
durante todo o campeonato, um zagueiro se desdobra como penúltima barreira. A
bola que passar por ele sou obrigado a pegar. Pouca coisa passa, felizmente. O zagueiro
é bom. Chama-se Tito. No ataque, nossos companheiros fazem bem o seu papel. Ao
final do torneio fomos campeões.
Mas
o zagueiro chama a atenção de todos. Inteligência e destemor. Ao partir sobre
o atacante o fazia com o corpo levemente inclinado para traz. Se atingido por
uma bolada, a inclinação diminuiria os danos físicos, além de modificar a
trajetória da bola que, resvalando, poderia escapar da grande área.
Futebol
é esporte bruto e a canela sofre. Um flagrante de coragem: por vezes o zagueiro
jogava com a canela enfaixada. Mas jogava. E o fazia com o mesmo denodo. Eu
observava curioso aquela natureza heroica.
O
ambiente era religioso. Uma agremiação mariana e um coral eclesial. Eu atuava
nos dois. Um ano após meu ingresso no coral, Tito nele ingressou. Já lá estavam
seus irmãos Ildefonso e Jorge. Coral misto. Rapazes e moças. Cantávamos nas
missas dominicais, nos casamentos e nas celebrações religiosas mais solenes. Às
vezes participávamos de recitais no Teatro José de Alencar e na televisão.
Veio
o vestibular. Entrei na faculdade. Uma vez lá, fui nucleado pela Juventude
Universitária Católica (JUC), da igreja progressista (alguns diziam
esquerdista). Tito ainda estava no segundo grau, mas já optara pela Juventude
Estudantil Católica (JEC). Uma experiência diferente. O senso crítico era o
apanágio daquelas “Juventudes”.
Adolescentes
que éramos, preferíamos ter como namoradas as militantes do movimento. Comunhão
de idéias e ideais. Um dia, conversando longamente com minha namorada da época,
ela referiu-se ao fato de, algum tempo antes, Tito ter-lhe proposto namoro.
“Qual foi sua resposta?”-perguntei. “Pedi um tempo”, disse-me ela. Menina
sensível, disse-me que percebera uma aura especial no candidato, como se ele
estivesse predestinado à vida monástica.
Dois
anos mais tarde, muda o cenário. Estamos em Recife, na rua dos Coelhos,
vizinhança do Hospital Pedro II. Moro na Casa dos Permanentes, um pensionato
destinado a membros de equipes de direção da Ação Católica de âmbito regional.
Pertenço à equipe regional da JUC-Nordeste. Na mesma casa residem os
permanentes da JEC regional. Denis, de Alagoas, Luiz, do Rio Grande do Norte e
Tito, do Ceará.
Compartilhamos
todos o mesmo dormitório. Ainda estou cursando agronomia na Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Uma vida cheia de reuniões, orações, leituras e
relatórios. Também sobressaltos, pois corre o ano de 1965, em plena ditadura
militar, e nós, tidos como esquerdistas perigosos, estávamos fadados pelo menos
à prisão.
Sempre
abominei a violência desde que me tive por gente. Optei na época por uma linha
de meditação com mais reflexão e menos provocação. Eu tinha a impressão de que
meus colegas nada temiam de tantos riscos que optavam por correr. Passeatas,
ações secretas, atuação em centros acadêmicos aguerridos, enfim, quase todos em
ansioso ritmo de enfrentamento da ditadura.
Eu
temia por minha sorte. Medo de ser preso ou morto. Preferia, portanto, as ações
mais institucionais do tipo padrão, como, por exemplo, seguir o genial Dom
Helder Câmara em seu trabalho pastoral, de natureza mais diplomática. À noite,
ao invés de ler as geografias de Josué de Castro eu preferia conhecer a vida de
Charles de Foucault, missionário na África, que foi considerado digno de ser
chamado, por sua caridade, "Irmão Universal".
Um
dia surpreendi meu colega Tito com meu livro nas mãos, em atenta leitura.
Pediu-me o livro por empréstimo. Obviamente emprestei-o. Daquele dia em diante
aquele livro passou a ser o tal da cabeceira do Tito. Findou que dei-o de
presente. Ele lia e anotava comentários no próprio livro.
Veio
minha formatura em junho de 1966. Deixei a JUC e a Casa dos Permanentes e segui
para a pós-graduação e para a vida profissional.
Somente dois anos depois, já em Brasília, voltei a ter notícias do Tito. Ele
optara pela vida monástica. Seria Dominicano.
+++
NOTA: Tito de Alencar Lima, o "Tito" dessa narrativa, viria a ser preso durante o regime militar que vigorou de 1964 até 1985 no Brasil. Torturado, junto com outros dominicanos, conforme se pode ver no filme "Batismo de Sangue", faleceu algum tempo depois na França, vítima de suicídio.
0 Comentários:
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial