O NADADOR DA AGRONOMIA
Por
Jean Kleber Mattos
Eu tinha dezessete anos quando apaixonei-me
por uma garota de minha rua, em Fortaleza. Ela tinha quatorze. Obviamente os
pais faziam restrições ao namoro dos menores. Não meus pais, mas os dela. Havia
também a diferença de classe social. A família da garota era de classe média
padrão e a minha era apenas remediada. Uma chance de nos encontrarmos seria se
fossemos do mesmo clube. A família dela era sócia do famoso Náutico Atlético Cearense.
Meu pai era sócio do Comercial Clube, bem mais modesto. Um amigo meu
aconselhou-me tentar ingressar no Náutico como sócio atleta da natação.
- Não paga mensalidade – dizia ele.
Dei uma risada. Eu não sabia nadar.
Ocorreu-me que, sendo eu congregado
mariano junto aos jesuítas, tinha acesso à piscina que eles tinham no Colégio
Santo Inácio em Baturité, por ocasião dos retiros espirituais. Na primeira
viagem, ganhei a piscina, obvio que na parte rasa, para aprender a nadar. Por
um descuido, caí em determinado momento na parte funda e tive de ser retirado
pelos colegas para não morrer afogado. No mesmo passeio, empenhei-me nas
tentativas até que consegui nadar por seis metros. Vitória. Prossegui na tarefa
e já estava nadando cinquenta metros alguns dias depois.
Quando voltei à Fortaleza procurei o
treinador do Náutico, um russo, para concorrer a uma vaga na equipe.
-Quantos metros você nada num só tiro? –
perguntou.
-Cem metros- falei
-Quando você conseguir nadar
quatrocentos metros volte aqui.
Treinei por quase um mês no mar. Quando
finalmente consegui nadar meio quilômetro, apresentei-me novamente.
O treinador me mandou nadar cem metros
enquanto observava. Ao final disse:
- Um pouco lento e sem estilo. Vou lhe
dar uma carteira provisória de quinze dias. Se ao cabo desse tempo você não
conseguir nadar cem metros em um minuto e vinte segundos, está fora. OK?
- OK ! - falei.
Durante quinze dias fui sócio atleta do
Náutico Atlético Cearense, treinando diariamente. Decorrido o prazo
estabelecido, fiz o teste. Fui reprovado.
Eu era nadador fundista. Aquele nadador
para grandes distâncias, mas que não tem velocidade. Um exemplo de fundista foi o capitão da marinha mercante
britânica Matthew Webb que em agosto de 1875 atravessou a nado o
Canal da Mancha, cobrindo uma distância de 61 quilômetros em 21 horas e 45 minutos.
Por
interferência de amigos que pertenciam à equipe de natação do Clube dos
Diários, fui inscrito no grupo. Nosso ídolo na época era o nadador Manoel dos
Santos que em 21 de setembro de 1961 no Rio
de Janeiro, nadando sozinho na piscina do Clube de Regatas Guanabara,
estabelecera um novo recorde mundial para os 100 metros livre, com o tempo
de 53s6. Manoel também foi recordista sul-americano dos 100 metros livre
por onze anos, entre 1958 e 1969. Ele nos deu aulas como convidado, e dizia
que, em vésperas de competição para o nadador, as vinte quatro horas do
dia deveriam ser assim divididas: oito
horas treinando, oito horas comendo e oito horas dormindo. Nosso treinamento
incluía ginástica e nado livre. O Campeonato Cearense de Natação fora
anunciado. Os clubes Náutico e Diários tinham as equipes de ponta na época. A
diretoria do Náutico comunicou que o clube não participaria. Como consequência,
as provas se dariam no Clube dos Diários, em piscina de 25 metros. Os atletas
seriam apenas o do próprio clube. O treinador Jaime inscreveu-me na prova de
quatrocentos metros, a qual, numa piscina de vinte e cinco metros acarreta dezesseis
viradas. Fácil de confundir o atleta.
No dia da prova, pulei na água e
nadei. Quando calculei que havia concluído, olhei pata trás e vi um nadador
ainda vindo numa das raias. Como eu sabia que era o mais lento, virei para
completar os cinquenta metros restantes. Fui flagrantemente o último a chegar.
Fora da piscina, o diretor de esportes já cheio de whisky, berrou:
-Seu filho da puta ! Você vai ser expulso da equipe !
Meus colegas logo se aproximaram
para me dizer que não levasse aquilo em consideração. Eu permaneceria na
equipe.
O treinador Jaime acreditava
realmente em meus dotes de fundista. Inscreveu-me então na famosa “Prova Heroica”.
Eram seis quilômetros no mar. Passei a treinar intensivamente a partir de
então. Cheguei a nadar três mil metros na piscina numa tarde. Tanto esforço
resultou numa sinusite. Fiquei mal. Depois do tratamento, o médico vaticinou:
- Você não pode voltar a competir
! Se voltar, a sinusite volta !
Meus amigos do Clube dos Diários realmente gostavam de mim. Ao comunicar o laudo médico, o treinador
Jaime mais uma vez me deu uma chance:
- Você é bem
humorado – disse – vou inscrever você na equipe dos Aqualoucos.
Meu Deus.
Aqualoucos são acrobatas e palhaços que fazem estripulias nos trampolins. Num
ato de boa vontade, compareci ao treinamento. Jaime comandou:
-Suba no
trampolim de três metros e salte !
Quando cheguei
lá em cima e olhei para baixo, amarelei. Tinha pânico de altura. Chegara ao fim
minha carreira de nadador, pensei. Não imaginava eu que dois anos depois
encontrar-me-ia novamente às voltas com uma competição na água.
Em 1964, realizaram-se
em Fortaleza as Olimpíadas Universitárias. Eu nem de longe imaginava em
participar. Após o fracasso no Clube dos Diários eu mergulhara numa maratona de
estudos, virando noites, para passar no vestibular. Consegui aprovação de
primeira, para o curso de agronomia. Minha vida mudou. Ingressei na política
estudantil, dormia tarde e frequentava todas as festas e “tertúlias” que podia.
Nas festas, enchia a cara de “Cuba Libre”, uma mistura de Rum Bacardi com
Coca-Cola, muito popular à época. Eu cursava então o segundo ano da escola.
Certo dia fui
procurado por um colega do comitê olímpico da escola, que me falou:
- Jean, fizemos
uma lista de possíveis nadadores para o time da escola e fomos informados de
que você já nadou pelos Diários...
Esclareci que
não havia sido um nadador de ponta e que minha vida de farras desde então me
incapacitava para a natação competitiva.
-Temos três
atletas inscritos – falou ele – falta apenas um para o revezamento. Você está
fraco mas tem estilo e deslizamento. Você seria o primeiro a pular na água. Os
outros atletas tentariam tirar a diferença. Contamos com a sua ajuda.
Eu não podia me
furtar. Concordei. Eu já conhecia dois dos três atletas. Um era o Francisco
Cunha, um cara estudioso, gostava de filosofar e tinha aptidão para a política.
Viria a ser no futuro um expoente na EMATER de Santa Catarina. O outro era o
José Albérsio Lima, a quem reencontraria bem mais tarde na Sociedade Brasileira
de Fitopatologia. Chegaríamos a ocupar a presidência da sociedade, eu em 1974,
ele em 1985.
O Cunha era
disciplinado e bem técnico. Tomava glicose na veia em véspera de competição, o
que era uma prática muito comum à época, principalmente para os casos de cólica
hepática decorrente dos excessos de bebida alcoólica, o que não era, claro, o
caso dele.
Fomos treinar na
piscina de 25m do Colégio Militar, lugar escolhido para a competição. Nadei cem
metros sob o olhar de Cunha. Ao final ele perguntou:
- Dá para nadar
um pouco mais rápido?
Falei que ia
tentar. Nadei mais algum tempo para testar a resistência e tentar melhorar o
desempenho.
O dia da prova
chegou. A primeira bateria era a prova de quatro por cem metros estilo livre.
Saí na frente conforme combinado. Eram três viradas. Na terceira virada percebi
que estava sem forças. Tentei o jogo de pernas para melhorar o deslizamento. Os
braços pesavam. Estava ficando bem para trás.
- Vai morrer ! -
gritava a plateia.
Cheguei ao fim e
vi meu colega, o segundo do revezamento, saltando. Saí da piscina e fiquei
deitado sobre o ladrilho, extenuado. As provas seguiam. Alguns minutos haviam
se passado e meu colega do comitê aproximou-se e perguntou-me:
- Como você está
?
- Mais ou menos
– respondi.
- Tem mais um
revezamento. Este menor. São quatro estilos, cinquenta metros. Precisamos de
você...
Quando subi à
plataforma, a plateia se agitou.
- É agora que
ele morre ! – gritavam.
Eram apenas
cinquenta metros. Uma virada apenas, estilo livre. Fiz o que pude. Cheguei
atrasado, claro, mas completei a minha participação.
Apenas três
faculdades estavam concorrendo. Agronomia, Economia e Medicina. A medalha de
bronze estava garantida. Dias depois da prova, contudo, eu teria uma agradável
surpresa. Procurou-me o colega do comitê para entregar-me uma medalha de prata.
- Não era de
bronze ? – perguntei.
- Era, mas
descobriu-se que um professor nadou uma das provas pela Medicina, o que é
proibido. A Medicina foi rebaixada. Você é vice-campeão olímpico.
Guardo a medalha
até hoje.
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