FÉRIAS NO CEARÁ E REMINISCÊNCIAS DE INFÂNCIA
Por
Jean Kleber Mattos
PEGA LADRÃO
A alcunha do larápio era
"Bolinha". Arrombador de residências. Marginal fichado na polícia de
Fortaleza como perigoso. Arma branca. Sabe-se lá por qual motivo, resolveu
deixar a capital e fazer incursões pelo interior do Ceará. Caminhos tortuosos o
trouxeram a Ipueiras, onde morávamos, no fim dos anos quarenta, século vinte.
Na primeira noite de atividade
arrombou três residências, uma delas o Educandário, onde morávamos eu, meus
pais Seo Mattos e D. Mundita, minha avó Luizinha, a criada Maria José e um
aluno interno, o Antônio Brandão.
No dia seguinte ao assalto, o Antônio,
que dormia numa rede na principal sala de aula, deu por falta do par de
alpargatas que deixara no chão sob a rede. Uma porta forçada forneceu a pista.
Alguém entrara sem ser convidado. A notícia logo se espalhou. Quase certo que
era alguém que vinha de longe, pois aquele tipo de crime não figurava em nossa
lista de ocorrências.
O contingente policial era pequeno.
Comandava-os o sargento Almeida. Logo, pacatos cidadãos da cidade ofereceram-se
para compor uma patrulha de vigilantes que auxiliariam a polícia na captura do
ladrão.
Minha avó narrou-nos então sua
experiência da noite do assalto. Sono leve, acordou em meio à madrugada com um
lampejo dentro de casa. Acendeu uma vela. Nada aconteceu. Apagou a vela, por
fim. Daí a pouco, outro lampejo. Luz forte. Acendeu novamente a vela e ficou
atenta. Nenhum barulho. Não mais lampejos.
Naquela época, rolava a crença de que
lampejos inexplicáveis dentro de casa durante a madrugada, eram um sinal do
além, avisando que estava próxima a "passagem" de alguém. Desencarne.
Ela havia ficado meio preocupada. Diante, porém, dos novos fatos que agitavam a
cidade, entendeu que os lampejos poderiam ser da lanterna do ladrão.
Neste dia a cidade dormiu em
sobressalto. Noite escura como breu. A patrulha era pequena mas nuclearia em
sua passagem eventuais dorminhocos, aos gritos, se houvesse necessidade.
De repente, um alarme no meio da
noite: aqui! Alguém percebera o que poderia ser o facínora esgueirando-se de
uma casa. A guarda e a patrulha cidadã acorreram. Lembro-me de Manoel Dias, o
dentista, como um dos nucleados.
Tática de guerrilha, o grupo
espalhou-se em leque para fechar os flancos, até que, de um quintal, um grito
denunciou a presença do fugitivo. Sem chance para ele. Foi finalmente
capturado. No dia seguinte, fila de gente à porta da cadeia para ver a presa.
Objetos recuperados eram entregues aos donos.
As alpargatas do Antônio Brandão
estavam lá. Uma das tiras fora parcialmente cortada à faca para acomodar o pé
do ladrão, que era maior. Mesmo assim, Antônio qui-la de volta.
Lembro-me de minha avó toda arrumada,
pronta para ir à cadeia visitar o detento. Comentou mais tarde sobre o diálogo
com ele travado. Coletara a impressão do marginal ao descobrir que adentrara
uma escola: "só tinha carteira...!" Sobre a coleta ínfima com a
insignificante subtração das alpargatas do adormecido Antônio: "para não
sair de mãos abanando..." Também sobre a boa qualidade da luz da lanterna:
"a senhora gostou?" No mais, apenas comentários sobre leveza de sono
e sinais do além: "credo...!"
O sucesso da caçada abriu espaço para
lendas e bravatas nos dias que se seguiram. Comentava-se que um dos policiais
"voara" mais de três metros ao precipitar-se sobre o fugitivo,
imobilizando-o. Como não poderia deixar de ser, também circulavam as fofocas
sobre quem tinha amarelado. E assim, o famoso "Bolinha" entrou, por
vias tortas, na história da velha Ipueiras.
Ah! Minha avó anotou a marca da
lanterna!
VOANDO COM FROTA NETO
Certo dia eu embarquei no aeroporto de
Brasília com destino à Fortaleza, para gozo de férias. Meus pais já moravam
comigo em Brasília, mas eu não dispensava aquela pequena temporada anual na
terrinha.
Nossa casa em Fortaleza
estava sob os cuidados de minha tia, D. Francisquinha, irmã de meu pai, que lá
morava com o marido Francisco Fontes e a filha Salete.Uma alegre e numerosa
comitiva havia embarcado antes de mim.
Quando entrei no avião ouvi
alguém me chamar pelo meu nome "ipueirense" de infância:- Klebinho !
Era Frota Neto, então
porta-voz do presidente Sarney, que estava indo à Fortaleza para o casamento da
filha. Grande alegria! Muitos anos haviam se passado desde nosso ultimo
encontro em Fortaleza, quando eu ainda estava no Cursinho Pré-Vestibular.
Naquela ocasião, ele, recém-chegado de Cuba, havia me instruído sobre os
programas sociais da ilha, pelos quais se entusiasmara. Meu assento no avião
tinha número baixo, logo no início. O dele ficava mais ao fundo. O voo
aguardava passageiros de conexão de forma que, por alguns minutos, Frota Neto,
com admirável simplicidade, sentado no braço da poltrona, colocou a conversa em
dia. Perguntou por "Seo" Mattos, por D. Mundita, deu notícias de
amigos de Ipueiras e apresentou-me a alguns colegas jornalistas que o
acompanhavam ao grande evento.
Embarcados os passageiros
da conexão, a comissária pediu que nos acomodássemos para a partida. Foi quando
tive a ideia de documentar aquele encontro histórico. Consegui um pedaço de
papel e tão logo o voo estabilizou fui até onde estava o Frota. Pedi-lhe que
escrevesse uma mensagem para meu pai, seu professor na escola primária.Com
entusiasmo, escreveu a mensagem, enquanto comentava alegremente com seus
colegas sobre Ipueiras e nossa infância.
De repente era como se o
tempo não tivesse passado. Ali estávamos, meninos de Ipueiras, o Kleber e o
"Antônio do Idálio", fazendo nossa pândega. No Bhagavad-gita li,
certa vez, uma singela lição sobre a atemporalidade do espírito. Havia um
convite a que a experimentássemos. Só o corpo envelhece. Em essência, o nosso
pensar, o nosso gostar e o nosso querer permanecem os mesmos. Einstein
descreveu a relatividade do "passar do tempo" em função da
velocidade. Mas o fato incrível naquele momento, é que a Ipueiras encantada de
nossa infância estava nos rejuvenescendo!
De volta para minha
poltrona algumas pessoas que eu nunca vira antes, cumprimentaram-me
sorridentes. Retribuí satisfeito e acomodei-me no assento. Endorfinas em alta,
de repente comecei a me sentir importante. E porque não? Afinal eu era amigo do
"ôme"!
Foi aí que "caiu a
ficha"...
VAI UM CAFÉ AÍ?
Meu pai, “Seo Mattos”, costumava
levar-me, eu criança, ao histórico estádio Presidente Vargas em Fortaleza, para
ver jogos de futebol, sempre que o Ceará, nosso time do coração, disputava. Era
uma saborosa aventura onde vendedores de roletes de cana e laranjas
revezavam-se com seus pregões típicos.
Os impropérios dos
torcedores também me divertiam. O tempo passou, eu migrei para outras terras
e, passadas décadas, voltando à Fortaleza resolvi conhecer o novo estádio: o
“Castelão”. Chegamos eu e meu pai atrasados para a partida noturna e vimos os
torcedores entrando livremente. Perguntei se não precisava pagar e me disseram
que já haviam transcorrido vinte minutos de partida, tempo a partir do qual a
entrada era franca. Ótimo.
Adentramos ao belo e bem
iluminado estádio e passamos a desfrutar do espetáculo. Súbito passou-nos ao
lado, na arquibancada, um vendedor de café e cigarros. Trazia uma larga e funda
bandeja de plástico alçada ao pescoço, com dois compartimentos. Um para
cigarros, outro para café. No compartimento do café, duas garrafas térmicas:
café doce e café amargo. Numa coluna bem engendrada, copinhos descartáveis.
Compramos café e eu avisei
a seu Mattos que iria provocar uma resposta do vendedor ao pagar a conta. Dito
e feito. Paguei o café e elogiei a organização e a limpeza dos artefatos do
vendedor. Ele agradeceu e eu completei:
- Amigo, café bom mesmo eu
tomei no passado, no Passeio Público! O senhor lembra daquelas mulheres
que vendiam café em chaleiras envoltas em panos, com uma lata cheia d’água à
tiracolo para lavar as xícaras?
O homem olhou para o alto como se tentasse
relembrar. Imaginei que à sua mente assomavam as imagens das gordas mulheres
com saias curtíssimas, oriundas do Arraial Moura Brasil, bairro vizinho, onde
cresciam manchas de baixo meretrício.
Ele me olhou de frente e
sentenciou.
- Eu já sei do que o senhor
gosta!
- Do que?-perguntei
- O senhor gosta mesmo é de
ver fundo de calça!
Seo Mattos não conteve a
gargalhada.
Você gosta de
filmes eróticos?
No início dos anos 80 do século XX num
determinado período, eu estava de férias em
Fortaleza.
Numa noite,
conversávamos em grupo sobre filmes de sexo explícito. Na cidade, o cinema
especializado na matéria era mal afamado em virtude de seu público marginal e
agressivo, o que inviabilizava a frequência do público feminino.
Uma amiga nossa reclamava da pouca
disponibilidade do artigo àquela época, somente disponível com segurança nos
motéis.
Propus então ao grupo que fossemos em
comitiva a um motel, apenas, claro, para vermos um daqueles filmes.
Meus colegas rejeitaram a ideia. Contudo
a mesma foi de pronto aprovada por cinco garotas, uma delas minha
namorada.
Dificuldades com a gerência eram
previsíveis, pois seriamos um grupo totalmente atípico para a situação, um
homem e cinco mulheres.
Eu dirigia o veículo. Ao lá chegarmos,
de cara fui acusado de promover “suruba”. Nada que uma boa conversa explicando
a finalidade da comitiva e sobretudo um breve acordo financeiro não resolvesse
a situação.
Assim, o filme proibido foi visto e
todos nós voltamos satisfeitos e comemorando a “façanha”.
E ainda trouxemos alguns brindes. Sabem
aqueles sabonetinhos tipo miniatura?
Pois é, ganhamos vários...
REABILITAÇÃO
Um de meus melhores amigos, um
conterrâneo, envolveu-se certa vez num acidente com arma de fogo quando morava
em Goiânia. Ele saíra em grupo para uma ‘caça ao pombo” e não percebera que sua
arma não era confiável.
O primeiro tiro, literalmente,
“saiu pela culatra”. A carga explodiu sobre seu rosto e um chumbinho rompeu o
osso frontal alojando-se no tecido do cérebro. Queda imediata. Hospitalização.
Neurocirurgia de emergência. Hemiplegia.
O fato dele não conseguir andar
assustava a todos. Seus familiares permaneciam ao seu lado dia e noite, ainda
no hospital. Cartazes com frases de autoajuda estavam afixados por toda a
parede do apartamento. Ao chegar alguém conhecido seu, o cumprimento, um aperto
de mão, tinha a força de uma tenaz. Não falava. Olhava-nos fixamente nos olhos.
Um mês depois, voltando de uma
reunião em Cuiabá, passei por Goiânia para ver como ele estava. Em casa,
deitado numa rede, continuava hemiplégico mas já falava e seu costumeiro bom
humor estava voltando. A rede estava úmida de urina colorida pela medicação.
Meu amigo muito mal controlava a micção e a evacuação. Ainda não firmava a
passada. A família, numerosa, continuava a lhe dar total apoio. Os integrantes
revezavam-se nos cuidados, mesmo morando à distância. Amor, fé e orações. Ao
seu lado, sua mãe pediu-me que a ajudasse a levá-lo ao banheiro.
-Tia, você tem dois cabos de
vassoura? Perguntei.
Ele lançou-me um olhar
assustado do tipo: "o que estará ele tramando?”
Obtidos os cabos, tentei
ensinar-lhe como, em movimentos sincronizados, locomover-se apoiado nas peças
de madeira. Para sua garantia neste primeiro momento, caminhamos ao seu lado,
apoiando-o, eu e sua mãe.
Algum tempo depois, chegando à
Fortaleza, reencontrei-o, desta vez na casa do pai. Ele já caminhava com algum
desembaraço dentro de casa e no quintal. Medicação controlada. Convidei-o então
para, à noite, integrar comigo um grupo de amigos que estavam indo a um forró,
desses tão comuns em Fortaleza. Relutante de início, pensou melhor e aceitou o
convite.
Chegados ao forró, não demorou
para que todos dançássemos. Eu fora privilegiado. Dançava com Vânia, um pé de
valsa. Leve como uma pluma. Meu amigo dançava com Margareth, verdadeira
professora. Forró e lambada eram com ela mesma. Em dado momento ele acercou-se
de mim e pediu:
- Jean, me dá a Vânia. Ela é
levinha. Margareth rebola muito e eu tenho medo de cair...!
Hoje meu amigo é um
fisioterapeuta diplomado, altamente prestigiado na área, atuando em Fortaleza.
Faz algum tempo que não o vejo. Quando o reencontrar vou perguntar-lhe se já
incluiu em seu manual de reabilitação, a técnica dos cabos de vassoura e a
dança com uma mulher levinha...
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