TITO, O ZAGUEIRO
Jean Kleber Mattos
O cenário é um pequeno campo de futebol num terreno lateral à Igreja do Cristo Rei, em Fortaleza, no Ceará, sede da Congregação Mariana. Ano de 1958. Times da categoria infantil disputam um campeonato. Um deles denomina-se Ceará. O uniforme é alvinegro como o da famosa equipe de profissionais. Tenho 13 anos. Jogo no time. Sou o goleiro. À minha direita durante todo o campeonato, um zagueiro se desdobra como penúltima barreira. A bola que passar por ele sou obrigado a pegar. Pouca coisa passa, felizmente. O zagueiro é bom. Chama-se Tito. No ataque, nossos companheiros fazem bem o seu papel. Ao final do torneio fomos campeões.
Mas o zagueiro chamou a atenção de todos. Inteligência e destemor. Ao partir sobre o atacante o fazia com o corpo levemente inclinado para traz. Se atingido por uma bolada, a inclinação diminuiria os danos físicos, além de modificar a trajetória da bola que, resvalando, poderia escapar da grande área.
Futebol é esporte bruto e a canela sofre. Um flagrante de coragem: por vezes o zagueiro jogava com a canela enfaixada. Mas jogava. E o fazia com o mesmo denodo. Eu observava curioso aquela natureza heróica.
O ambiente era religioso. Uma agremiação mariana e um coral eclesial. Eu atuava nos dois. Um ano após meu ingresso no coral, Tito nele ingressou. Lá já estavam seus irmãos Ildefonso e Jorge. Coral misto. Rapazes e moças. Cantávamos nas missas dominicais, nos casamentos e nas celebrações religiosas mais solenes. Às vezes participávamos de recitais no Teatro José de Alencar e na televisão.
Veio o vestibular. Entrei na faculdade. Uma vez lá, fui nucleado pela Juventude Universitária Católica (JUC), da igreja progressista (alguns diziam esquerdista). Tito ainda estava no segundo grau, mas já optara pela Juventude Estudantil Católica (JEC). Uma experiência diferente. O senso crítico era o apanágio daquelas “Juventudes”.
Adolescentes que éramos, preferíamos ter como namoradas as militantes do movimento. Comunhão de idéias e ideais. Um dia, conversando longamente com minha namorada da época, ela referiu-se ao fato de, algum tempo antes, Tito ter-lhe proposto namoro. “Qual foi sua resposta?”-perguntei. “Pedi tempo”, disse-me ela. Menina sensível, disse-me que percebera uma aura especial no candidato, como se ele estivesse predestinado à vida monástica.
Dois anos mais tarde, muda o cenário. Estamos em Recife-Pernambuco, rua dos Coelhos, vizinhança do Hospital Pedro II. Moro na Casa dos Permanentes, um pensionato destinado a membros de equipes de direção da Ação Católica de âmbito regional. Pertenço à equipe regional da JUC-Nordeste. Na mesma casa residem os permanentes da JEC regional. Denis, de Alagoas, Luiz, do Rio Grande do Norte e Tito, do Ceará.
Compartilhamos todos o mesmo dormitório. Ainda estou cursando agronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Uma vida cheia de reuniões, orações, leituras e relatórios. Também sobressaltos, pois corre o ano de 1965, em plena ditadura militar, e nós, tidos como esquerdistas perigosos, estávamos fadados pelo menos à prisão.
Sempre abominei a violência desde que me tive por gente. Optei na época por uma linha de meditação com mais reflexão e menos provocação. Eu tinha a impressão de que meus colegas nada temiam de tantos riscos que optavam por correr. Passeatas, ações secretas, atuação em centros acadêmicos aguerridos, enfim, quase todos em ansioso ritmo de enfrentamento da ditadura!
Eu temia por minha sorte. Medo de ser preso ou morto. Preferia, portanto, as ações mais institucionais do tipo padrão, como, por exemplo, seguir o genial Dom Helder Câmara em seu trabalho pastoral, de natureza mais diplomática. À noite, ao invés de ler as geografias de Josué de Castro eu preferia conhecer a vida de Charles de Foucault, missionário na África, que foi considerado digno de ser chamado, pela sua caridade, "Irmão Universal".
Um dia surpreendi meu colega Tito com meu livro nas mãos, em atenta leitura. Pediu-me o livro por empréstimo. Obviamente emprestei-o. Daquele dia em diante aquele livro passou a ser o tal da cabeceira do Tito. Findou que dei-o de presente. Ele lia e anotava comentários no próprio livro.
Veio minha formatura em junho de 1966. Deixei a JUC e a Casa dos Permanentes e segui para a pós-graduação e para a vida profissional.
Somente dois anos depois, já em Brasília, voltei a ter notícias do Tito. Ele optara pela vida monástica.
Seria Dominicano.
2 Comentários:
Jean, bela narrativa e assim passaremos a conhecer ainda mais
este nobre prof. de agronomia e quem foram seus colegas da juventude. E Frei Tito, por esta narrativa deu para sentir que tanto era bom como zagueiro assim como na vida religiosa. Parabéns.
Jean Kleber, parabéns por compartilhar com seus leitores a história de três cearenses destaque em nossa história.
Você, que nos orgulha com sua brilhante e contínua carreira na agronomia e suas ramificações.
De Dom Hélder Câmara pai dos menos favorecidos, uma frase:"Quando dou de comer aos pobres, chamam-me de santo, quando respondo porque é que os pobres tem fome, chamam-me de comunista.
De Frei Tito, A trite recordação de um cearence torturado, que depois de anistiado não suportando as trágicas lembranças, deu fim a própia vida.
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