O ASTUTO CIRURGIÃO
Luiz Alpiano Viana
Leonel era um ipueirense que morava no Vamos Ver, à margem da linha férrea, quase no Vidéu. Conheci-o ainda novo e casado. Tinha uma família de vários filhos adolescentes e adultos. Trabalhador e incansável lutador pelo pão nosso de cada dia, não era diferente dos demais donos de casa. Vivia de pequenos negócios, comprando e revendendo o que chegasse ao seu alcance: como relógio, espingarda, cavalo, jumento, cela de montaria, bicicleta e outros. Logo cedo, a fama de bom vendedor e comprador espalhou-se entre amigos e conhecidos de sua área de atuação. Por causa disso não demorou a ser procurado pelos ciganos que periodicamente acampavam nos arredores da cidade. O chefe da turma conheceu-o num sábado, dia consagrado à compra e à venda de mercadoria, principalmente alimentos vindos da zona rural. A amizade se enraizou tão bem que ele cedeu parte de sua pequena propriedade para acampamento dos nômades, conhecidos por todos como ciganos. Os ciganos tinham muito respeito por ele e o obedeciam como grande chefe e amigo.
Finalmente tornou-se rotina aquele vai-e-vem periódico de cigano no bairro do Vamos Ver. A maioria dos moradores não aprovava a permanência deles na cidade, por causa de pequenos roubos que lhes eram atribuídos.
Experiente em negócio das mais variadas espécies, preparou Leonel um presente de grego para seus hóspedes. Adquiriu ele, não se sabe onde, um cavalo com todas as características do gosto dos ciganos, mas era bicó. Passou meses tratando o cavalo, engordou-o, ficou uma beleza! O problema que lhe tirava o sono, e quase sem solução, estava no rabo do animal. Cigano não compra animal sem rabo. Ele conhecia isso muito bem, pois vivia no meio deles há muito tempo. Não era possível vender aquele cavalo aos ciganos.
Sabe-se mesmo que todo problema tem solução! Ao descobrir que o trem tinha pegado um cavalo para os lados do Vidéu, foi às pressas ao local e antes que os urubus chegassem, colheu a calda e a preparou para um pequeno implante. Depois de algum tempo cuidando do rabo do cavalo morto, o astuto cirurgião concluiu a operação. Implantou uma calda nova no cavalo suro e o manteve num estábulo especial, tratando-o com biscoito e água fria, à espera de um comprador.
Não demorou muito a turma de cigano acampa mais uma vez na propriedade de seu cicerone. Mais ou menos duzentas pessoas entre homens, mulheres, crianças, e muitos animais: cavalos, éguas, jumentos, cães e gatos. No dia seguinte, sábado, muito cedo, a ciganada dirige-se à feira, com o intuito de novos negócios, porque é disso que vivem e sempre com má fé. Leonel e sua peça rara chegaram mais cedo ao local feireiro. Aparentemente desinteressado ele desfila montado num majestoso cavalo que chama a atenção dos apaixonados por eqüino. Parecia até aqueles cavalos de biga. Logo os chefes da aldeia o cercam e o atubibam para negociá-lo. Ficam encantados; na troca oferecem relógios, revólveres, aparelhos de som e quantia certa em dinheiro, e até outro animal. O maquiavélico negociante reluta, dá um tempo, afasta-se um pouco dos ciganos e espera melhores propostas. Eles não desistem e o seguem. Finalmente aceita de última hora nova proposta e fecha negócio.
Sol a pino e sufocante, a feira começa a se esvaziar e todos tomam o caminho de volta para suas casas. Quem fez bons negócios, está feliz e quem fez mal, só lamenta. Os ciganos estão satisfeitos porque foram bem sucedidos e no meio de tantos negócios, compraram um lindo cavalo! Ao chegarem às barracas mostram-no aos companheiros. Cada um demonstra satisfação na compra. Montam-no, troteiam, puxam-no em círculo pelo cabresto. Arregaçam a boca do animal para ver os dentes, por fim usam todos os truques que conhecem para descobrirem defeito e não encontram nada.
Um ciganinho peralta, desnudo e sem maldade sai de uma das tendas, corre para montar a mais nova aquisição do pai. Eles, os pequenos ciganos, costumam montar, pisando no calcanhar do animal, e, apoiando-se na calda, dão um impulso e caem certeiros e estrategicamente na montaria, como fazem os índios guerreiros. Uma surpresa desagradabilíssima deixa-os atônitos. A calda, que levou horas numa meticulosa operação cirúrgica a Zerbini, descolou-se e o ciganinho foi ao chão. Todos correram para ver o que tinha realmente acontecido. Sem dúvida nenhuma Leonel os tinha enganado! Não acreditavam no que viam. Ele não pode ter feito isso, confabulou um dos comandantes em chefe. Vamos lá conversar com ele, disse outro.
Seguiram-no, uns a pé e outros a cavalo, por um pequeno trecho de caminho que dava até a casa do mestre do engodo. Leonel ao avistá-los e sabendo o que tinha aprontado, arribou rápido numa égua que pastava no terreiro de casa. Assustado, ele cutucava de espora impiedosamente o vazio da besta. Em alta velocidade, olhava constantemente por sobre os ombros e batia forte, muito forte mesmo, o chicote. Os ciganos gritavam: Leonel... Leonel... Leonel... Nós não queremos desmanchar o negócio! Só queremos que nos ensine a botar rabo em cavalo!
Os ciganos ainda hoje comentam a forma como foram enganados. Não se conformam. Leonel também não ensinou para ninguém o truque de como botar rabo em cavalo cotó!
2 Comentários:
Que legal Alpiano, recordar Ipueiras dos ciganos e a velha história do Leonel que até hoje é comentada por lá.
Um abraço,
Dalinha
São narrativas pitorescas como essa de Alpiano, que nos lavam a alma por homenagearem nossa cultura de origem. Parabéns!
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