Por
Marcondes Rosa de Sousa
Adolescente, vi-me arrancado das retiradas águas e das caatingas, transposto para as brumas da Serra dos Órgãos, no Seminário Nossa Senhora do Amor Divino, em Petrópolis (RJ), a compor eclética mistura de garotos atraídos da Baixada Fluminense, do brabo interior das Minas Gerais e dois outros “paus-de-arara” (o jornalista Frota Neto e eu), estes da aridez das caatingas, todos ali, em cristã irmandade, lado a lado com remanescentes das casas de Orleans e Bragança.
Volta-me o dueto dos tempos de infância. Fábulas e estórias, desta feita, nos versos de Fedro e Esopo. Música e canto coral, sob a pauta gregoriana, a se casar com os textos litúrgicos. Na biblioteca, os clássicos a dar o tom. Nas salas de aula, a Antologia Nacional, a nos sugerir os adequados parâmetros dos vários usos lingüísticos. De quebra, as cartas e Catilinárias de Cícero; os versos de Ovídio e Virgílio, entre outros, os Diálogos de Platão, a Anábase de Xenofonte...
Até os castigos nos calariam feitos lição.Para cada traquinagem, decorar versos e textos. Lembro-me de “As pombas”, de Raimundo Correia, o poema primeiro que me coube, por castigo, decorar. E do ódio que tive, como castigo por infração maior, ao ter de pólo na ponta da língua o “Cântico do Calvário”, de Fagundes Varela, escrito, num jato, ao chegar em casa o poeta e encontrar o filho morto (rezava o biografismo dos livros didáticos da época), e, sobre o féretro, produzir longos versos a falar de “um frio sonhar que é morto”... Irresponsável! − condenava eu (revoltado com o castigo) as farras do pai-poeta e a visão melodramática do romantismo nos tempos do “mal do século”!...
Hoje, releio tudo isso não tanto como castigo mas sob outra ótica: a do dueto entre o oral e escrito, na infância e a escola consolidando-se, quem sabe estabelecendo os padrões melódicos em minha prática de escrita e estilo! Somem-se a isso, os “discursos” que tínhamos de pronunciar na “academia literária”, os textos do script das peças teatrais onde éramos atores. Em tudo, uma coincidência: quem nos regia - nas aulas, na “academia literária” ou nos cânticos - era o mesmo professor, sob o compasso dos textos e dos cânticos, a nos ensinar português e música ao mesmo tempo.
6. "O Caderno das Cinco Linhas"
Foi desse professor, Pe. Paulo Elias Daher Chedier, a idéia do “Caderno das Cinco Linhas”. Era um caderno, em Petrópolis, obrigatório a todos nós. Na capa, o dístico de Plínio: nulla dies sine línea (dia algum sem uma linha). A cada dia, a apresentação das cinco linhas mínimas ao professor de português.
Da primeira vez (lembro-me muito), não consegui realizar a tarefa. Ao professor, contei todo meu drama na busca e pauta do assunto. Ele, sorrindo, apenas me disse: “Se você tivesse, por escrito, contado toda sua busca, garanto que, só aí, teria já ultrapassado as cinco linhas”.Daí por diante, olhos nas cinco linhas diárias, aprendi a observar e registrar a vida a meu redor: os passeios, os filmes a que assistia, os papos que tinha, os comentários, as reflexões enfim...
7. Oral e escrito, o dueto
No Seminário da Imaculada, em Campinas (SP), ultimaria meus estudos de seminário menor. E tais padrões tiveram continuidade. Poucas, as diferenças. O dueto entre o oral e o escrito ia mais fundo: a “academia literária”, as peças de teatro. E um dado novo, um jornal e uma “rádio”, projetos que terminei por coordenar.
Curioso! Décadas após, era eu, na UFC, um do grupo a conceber e implantar a Rádio Universitária e o Jornal Universitário. No Estado, terminaria por presidir a Televisão Educativa e junto à Secretaria Estadual de Cultura, implantaria o Departamento de Audiovisuais. Tudo, numa salutar e semiológica aproximação de linguagens, onde expressões como “gramática do cinema e do audiovisual” não escandalizava ninguém...
Voltemos ao Seminário da Imaculada. Como professor de português, ao invés de um músico, um orador desta feita – Mons. Luiz de Abreu, ex-deputado estadual ardoroso fã dos da Revolução Constitucionalista, em São Paulo. Em latim, um padre belga, Karl Laga, a nos introduzir nos versos de Ovídio e Virgílio. No grego e na química, outro belga, também sacerdote, que, em Medelin, tornar-se-ia depois importante: Joseph Comblin.
Foto 1: Pe. Comblin em instantâneo recente.
Foto 2: No passado, com D. Helder câmara
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Marcondes Rosa de Sousa, advogado, é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECe). É uma das maiores autoridades em educação do Brasil. Ex-presidente do Conselho de Educação do Ceará e do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação, é Colunista do jornal " O Povo ", onde mantém seus artigos quinzenais.
marcondesrosa@gmail.com _________________________________________
NOTA DO BLOG
Da "Revista Ação" site diocesepetropolis.org.br/revistaacao/?p=472, copiamos:
O teólogo Padre José Comblin, de 88 anos, morreu recentemente, na manhã de 27 de março de 2011, no interior da Bahia, onde ministrava um curso para comunidades de base. Nascido em Bruxelas, na Bélgica, em 1923, Comblin foi ordenado padre em 1947. Fez doutorado em teologia pela Universidade Católica de Louvaina e chegou ao Brasil em 1958. Em Recife, a convite de Dom Helder Câmara, foi professor no Instituto de Teologia do Recife. Expulso do Brasil em 1971 pelo regime militar, Padre Comblin exilou-se no Chile durante oito anos, de onde também foi expulso em 1980 pelo general Pinochet. Voltando ao Brasil, foi morar na Paraíba, em Serra Redonda. Estudioso da Igreja da América Latina, escreveu obras como a “Teologia da Enxada”, uma corrente teológica surgida em 1969 na Igreja Católica do Nordeste do Brasil que tem como base a reflexão a partir da vivência cristã e teológica nas comunidades pobres. Padre Comblin foi sepultado no Santuário do Padre Ibiapina, localizado em Santa Fé, povoado que faz parte do município de Solânea, na Paraíba.
2 Comentários:
Texto irretocável do professor Marcondes Rosa em Homenagem a Pe. Comblin. Da gosto publicar. Parabéns, mestre!
Jean Kleber,
Padre Comblin, no Seminário da Imaculada, em Campinas (SP) me conquistou com sua sabedoria - Humilde sabedoria sobretudo se comparadsa ao outro patrício dele, ambos professores nossos. Padre Comblin, além de no Seminário, onde nos dava aulas de grego química. dava aulas, na Universidade Católica de Campinas e ... no Chile. Foi das primeiras vozes do que se denominaria "teologia da libertação". Padre Laga, certa feita, após jogar ao lado as gramáticas latinas, virou-se para mim e sentenciou: "Aqui, siga-me. Eu sou a gramática viva".
Não posso dizer que pouco aprendi com ele. Ele, ao lermos Ovídio por exemplo, repassava-nos as figuras todas, mesmo sem estar traduzindo. Lembro-me que certa feita, eu lendo versos latinos, para traduzir barco a deslizar nas ondas, senti tanto o oscilação dos barcos que, em meus gestos terminei por dizer que o barco "perlabava" as ondas, AO invés de "perlabitur undas". Bom professor, mas, em paralelo a Pe. Conblin, não chegava à humildade deste. Uma vez, desastrado, causei ligeiro incêndio no laboratório de Pe. Comblin. Pensei que ia ser castigado. Compreendiso lá se foi ele apagar o tal "incêndio"...
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