DETE E ZÉ GAMELA
Jean Kleber Mattos
Tarde da noite de um dia comum. Brasil, século vinte, anos cinqüenta, cidade de Ipueiras, Estado do Ceará. Dois rapazes afixaram um pequeno cartaz na parede de uma casa na esquina leste da Praça Getúlio Vargas, em frente ao Educandário. Após retiraram-se, minha avó, D. Luizinha, chamou-nos para ver. Lá, anunciava-se um espetáculo de música, mágicas e palhaçadas com dois protagonistas: Dete e Zé Gamela. Seria no salão da prefeitura.
Minha mãe, D. Mundita, analisou o anúncio e comentou: "acho que conheço esse povo!". Lembrou de uma ex-colega da Escola Normal em Fortaleza que tinha dotes musicais e que casara com alguém do ramo, pois tinha planos de seguir a vida de trupe. Bernadete era o nome. Não deu outra.
Chegada a trupe, hospedaram-se na pensão do Meton, próximo à nossa casa. Fizemos-lhe uma visita. Era realmente Bernadete, a ex-colega de D. Mundita. Cabelo longo, levemente oxigenado, sobrancelhas bem raspadas, maquiagem destacada. Típica artista do “show business”. O marido, um autêntico comunicador. Dom da palavra. Perfil aristocrático.
Três noites de show apenas. Os dois cantavam bem. Dete fazia “cover“ de Carmen Miranda, ao vivo, pois não havia “play back” naqueles idos. O casal fazia ainda o famoso número mágico das adivinhações. Com os olhos vendados e de costas para a platéia, Dete respondia com precisão às perguntas que o marido lhe fazia sobre as vestes e os objetos portados pelos espectadores. O ponto alto era quando ele solicitava a um dos presentes que lhe mostrasse dinheiro em cédula. Dete, à distância, recitava o número de série da nota respondendo à pergunta de Zé Gamela. Truque antigo. Código de palavras. Impressionava, contudo.
Os filhos, um menino e uma menina assistiam a tudo. Volta e meia, a menina, ainda muito pequena, fazia um dengo. Zé Gamela pedia então ao filho, de oito anos, para dar uma voltinha com a irmã. O show estaria incompleto sem as piadas e as palhaçadas. Zé Gamela dizia que nós deveríamos ter o estômago na barriga, para virar o prato de comida direto lá. O nariz deveria ser na axila para bem fechá-lo aos maus cheiros, e o olho, na ponta do dedo indicador para facilitar buscas e olhares furtivos. Neste momento, fazia um gesto malicioso.
No segundo dia, em meio ao show, Dete teve um acesso de pranto. Retirou-se por breves instantes aos bastidores, enquanto o marido fazia a “cortina”. Cuidadoso, Zé Gamela perguntou à platéia se ocorrera algo extra. A resposta, em coro, foi não. Dete logo voltou sorridente. Pediu desculpas.
Interpretando, minha mãe e minha avó acharam que a presença delas na platéia, testemunhas que haviam sido da adolescência da artista, motivara aquela emoção. Sabe-se lá o que passa na mente das pessoas. Talvez a síndrome do “tudo o que poderia ter sido e não foi”.
A cidade dividiu-se quanto ao show. Alguns, mais liberais, se haviam divertido com o espetáculo. Os mais conservadores ou puritanos no entanto, implicaram com a “barriga de fora” da “cover” de Carmen Miranda e com os gestos “indecentes” de Zé Gamela, ao descrever o olho no dedo.
Foto do prédio da Prefeitura de Ipueiras:
3 Comentários:
Excelente resgate do sr. Jean Kleber, suas crônicas são narradas num estilo que prende atenção e mais, são criativas, passam dados, até preconceitos da época. No fim alguém lebrou de Dete e Zé Gamela, e os resgatou com grande talento, mais uma página da história cotidiana de Ipueiras foi registrada,parabéns ao autor que com sensibilidade passa memórias como se fosse contos. Bérgson Frota
Jean Klebe mais uma vez nos brinda com uma crônica ímpar, assunto inédito nos relatos sobre Ipueiras.
Gostei!!! mas só posso dizer: essa não é do meu tempo.
Amei ler sobre Zé Gamela e Dete ( Dety). Sou filha deles.
Obrigada. Muito emocionada aqui.
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