ERA NOITE DE LUA CHEIA
Era noite de lua cheia, havia acabado de escrever um artigo e debrucei-me na sacada do apartamento. Estava cansado pois o dia havia sido cheio, mas deparei com a imagem da lua, brilhando sobre Fortaleza.
Então lembrei de uma promessa.
Prometi a uma amiga do Rio que um dia, quando as “musas” me inspirassem faria um conto sobre sua vida. Lembrei da lua cheia que ela tanto gostava, não titubeei e fui correndo buscar caneta e papel.
Olhava para o céu, e depois escrevia lembrando de trechos a mim confessados por ela de sua vida. E assim o texto foi sendo feito, era setembro de 2003.
Naquela noite inspirado concluí “A última lua cheia”, conto dedicado à uma notável ipueirense, e depois deixei o tempo passar para na primeira oportunidade lhe entregar em mãos.
Mas com desencontros havidos, mudei de idéia e resolvi fazer uma surpresa que certamente lhe agradaria mais.
Já era 2004, março precisamente, ela estava em Ipueiras e sabendo eu que chegaria sexta, voltando ao Rio domingo, levei o trabalho à redação do Diário do Nordeste e sábado à noite lhe liguei avisando que sairia um conto meu no dia seguinte, para que ela não deixasse de ler e dar sua opinião, coisa que sempre estimei.
Assim chegou às suas mãos o texto que fiz para ela.
“A última lua cheia”, um conto de dor e conquista, de queda e superação. Mas acima de tudo de gratidão a quem antes muito me apoiou em cada trabalho e muito me estimulou a continuar. No conto recebe o nome de uma flor, arquétipo perfeito do feminino, de natureza bela e agradável. Assim é o conto que segue ...
Moça mal-falada eram o que diziam. Levava uma vida no ventre. Vida que recusou apagar, luz que trazia tesouro que poucos percebiam.
A cidade como uma imperiosa juíza, serva de uma sociedade hipócrita, exigia sangue. Assim como ela outras já tinha sido. Mas cederam e preferiram matar que dar à vida.
Foge ! Foge para bem longe --- grita-lhe o medo que pesa sobre seus poucos anos. E que peso Deus se pode ter tal desespero.
Feito alma sem rumo adentra a estrada do mundo, tão nova tão cedo, deixa sua família, seu povo, sua cidade.
Com os dias que se seguem só mágoas. Só lamentos, como se o ventre fecundado fosse obra satânica.
E que ternura diante de tão grande desespero, abrigar um ser que em seus primeiros momentos só tem a mãe para se apegar.
Naquela noite Dália olhava o céu. E entre as nuvens via a lua cheia, pintada de um amarelo pérola. Queria gritar sua dor, queria ser mais forte e então auto-socorrer-se. Mas não resistiu e decidiu partir.
Deixou um lar que tanto amava e um tempo que não se lhe restituiu.
Durante os anos que passaram, deitada na poesia reclamava com dor sua calada inocência. Era para o filho parido pai e mãe ao mesmo tempo.
E sucediam-se os anos,lá longe, distante, lembrava da sua Sarieupi. Sonhava com as tardes frescas de inverno, onde o rio corria para banhar a mocidade de seu tempo. Sonhava com seus amores, suas secretas paixões encobertas do amor genuíno qual flor se dá ao colibri.
Antes que chegue o dia, a lua já pálida no céu, ela amamenta o filho e pela janela, vê sumir o astro noturno que iluminou a noite, também da sua tão distante cidade.
Quer regressar à terra. A mesma terra que antes lhe expulsou.
Mas a terra não tem nada a lhe dar, porque também é mãe, não pecou, conhece todos seus filhos, muitos dos quais já deitou.
Pesa então a consciência dos que lhe apontaram o pudor.
Talvez já tão opacados que atos ou gestos hoje nem contem.
De quem é a vitória ? Há de se perguntar.
Daquela que deu a vida ou da que se negou procriar?
O céu claro ilumina a cidade, ela contempla a imagem do Cristo no alto do morro, caminha entre os seus, leva consigo lembranças. Dobra e depara-se com o arco da Virgem, também mãe como ela, também fugitiva, e seu espírito se apascenta.
Ambas fugiram, uma para parir distante outra para proteger sua cria.
O sol escaldante a leva às areias finas do Jatobá. Com um murmúrio baixo a água doce desce em direção ao mar. Molha quase que ritualmente os pés naquela fresca correnteza, e de súbito lhe vêem imagens de sua adolescência, fatos que só o coração faz a mente criar.
Então Dália se entrega a um torpor, a um mundo perdido, que com esforço vai construindo até chegar novamente a sua época. E lá contempla os que expulsam a jovem grávida. Vê-os mas agora sem ódio. Tem pena. A cena é como a de um filme, ela percebe o quanto cresceu, o quanto o sofrimento lhe ensinou. Mas vê também que venceu. Nada foi em vão. Qualquer rancor ou ódio agora, seria como um sentimento estéril diante da íntima felicidade que desfruta.
Recolhe-se à fazenda, uma pequena chácara próxima da cidade. Pensa na vida, põe-se a escrever, e no inseparável caderno começam a jorrar poesias alegres, tristes, sonhadoras, provocantes, mas todas contendo no íntimo uma alegria secreta.
Um vento frio percorre-lhe o corpo, o cheiro de um companheiro fiel que nunca lhe faltou. Foi amada, amou-se, e nessa relação sincera construiu sua vida.
A noite é de lua cheia, repleta de lembranças.
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Bérgson Frota, formado em Filosofia/Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) e em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR),é um prestigiado cronista ipueirense e pesquisador da história e da geografia da cidade de Ipueiras, no Ceará. É professor visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e professor de Grego Clássico no Seminário da Prainha - Fortaleza.
3 Comentários:
Damos as boas vindas ao grande cronista e pesquisador ipueirense Bérgson Frota. Seus criativos e elaborados textos com certeza enriquecerão o Suaveolens.
Bérgson e eu durante muito tempo caminhamos juntos.
Tanto eu como ele escrevíamos e engavetavamos nossos escritos, nisso, um foi incentivando o outro a publicar. E, para minha felicidade mais de uma vez, foram publicados artigos nosssos na mesma página de jornal.Valeu a caminha !!!
Bérgson, Seja-Bem-vindo
Bergson: Quanta poesia ha neste texto.Sensibilidade que corre nas veias,que emociona e faz refletir ate mesmo os mais rudes.O belo e simplesmente belo por sua essencia e pelos olhos de quem o aprecia.
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