DOIS DIAS A REVISITAR IPUEIRAS (II). PAPOS E REFLEXÕES NA ESTRADA
“Nos anos 53/54, houve uma seca da "molesta" no sertão nordestino. O Brasil ficou cheio de arapuca: ‘Ajuda teu irmão! Uma esmola pro flagelado nordestino. Qualquer coisa serve (...)!. Eu e Zé Dantas protestamos. E gritamos bem alto”:
Têm muita gratidão,
Pelo auxílio dos sulistas,
Nesta seca do sertão.
Mas, doutor, uma esmola,
A um homem que é são,
Ou lhe mata de vergonha,
Ou vicia o cidadão!
(Voltando a falar) :
Um deputado do povo bradou do parlamento nacional: “Senhor presidente! Este baião de Gonzaga e Zé Dantas vale por mais de cem discursos. E tenho dito!
E agora eu louvo, bem alto, o nome daquele que criou a SUDENE. Obrigaaaado, Jusceliiiino!!!
(Voltando a cantar):
Encha os rios de barragem,
Dê comida a preço bom,
Não esqueça a açudagem,
Livre assim nós da esmola
Que no fim dessa estiagem
Lhe pagamo inté os juros
Sem gastar nossa coragem
Cristo despido das torres a arranhá-lo
À margem da estrada, ponto de encontro nos convida para um café da manhã, com os sabores da terra, antes de encararmos o chão até Ipueiras. Ali, um carro da Prefeitura Municipal de Ipueiras , nos traz o motorista, a lembrar-se de nós, filhos do “Seu Wencery”, a quem dá dicas sobre os estragos na estrada até Ipu. A estética visual do carro me agrada: O Cristo, despido das humilhantes torres a arranhá-lo, ali nos abraça. Tudo em forte apelo estético a reforçar a imagem moderna da Prefeitura. No mais, um parêntese em nossas dietas. Afinal, ninguém é de ferro.
Esmola e trabalho:
O sutil conflito,
no imaginário do povo
O Ceará é centro, sabemos de dois grandes centros de romaria: Canindé e Juazeiro do norte. Mas, entre os dois, o imaginário popular abriga dois valores em sutil conflito. A esmola, em Canindé; a arte e o trabalho, em Juazeiro do Padim Ciço Romão.
Em Canindé, São Francisco é o “irmão menor”, que os mais à esquerda, querem “o menor entre os menores” – o “mínimo”, no dialeto popular, o “lascado”. Já em Juazeiro do Norte, não são os sobrenomes que valem. Mas o tipo de contribuição que as pessoas prestam à coletividade, com seu trabalho e sua arte. A terra, ali, é dos que prestam serviços com a banda de pífaros, com o “barro cru” como se sobrenome de Dona Ciça, entre os muitos.
Canindé: a igreja dos lascados.
Leonardo Boff, no livro Terapeutas do Deserto, que escreve com Jean-Yves Leloup, a propósito de uma das faces de São Francisco, diz do “irmão menor”:
“Menor, porque, naquela divisão social burguesa, de maiores e menores, ele fica com os menores. Este é o sentido social de menor. Sua ordem é a dos frades menores (...) Além desta ordem tem a Ordem dos Mínimos, menores ainda que os menores, mais radicais ainda. E hoje nós inventamos mais uma ordem, a dos lascados. Há todo um movimento nordestino dos frades, para a criação da Ordem Franciscana dos Lascados, da Ecclesia Lascatorum, (da Igreja dos lascados).
Imaginem vocês que, lá no Ceará, São Francisco é nordestino, não é de Assis, é São Francisco do Canindé. É o maior santuário franciscano do mundo e passam por lá milhares e milhares de pessoas. Estive lá, várias vezes. O povo acha que os frades escondem São Francisco dentro daquele convento enorme. Então o povo vai à Igreja de São Francisco, paga as suas promessas, desfila diante do convento, olha-o com curiosidade para ver se ele está lá dentro, escondido. E dizem uns aos outros: ‘São Francisco está lá dentro. Eu o vi. Estes padres alemães são maus, escondem São Francisco’. Isso porque a mentalidade mítica popular não é diacrônica. Ela é sincrônica. Moisés, Jesus, João XXII, São Francisco vivem todos juntos, em um mesmo tempo. Não é São Francisco medieval. É o São Francisco de hoje, que está aqui, que é de Canindé e não de Assis” (pp. 77-78)
Nessas duas visões, talvez uma diferença sutil, entre as duas visões a carregar o imaginário de nossa gente. Canindé, a esmola; Juazeiro, o trabalho.
1 Comentários:
Nesta segunda parte de suas reflexões de viagem, Marcondes traz da memória para a tela a letra bem inspirada do "forró" interpretado pelo grande Luiz Gonzaga, que marcaria uma geração inteira: "esmola não...desenvolvimento sim!". Genial a abordagem sobre a existência da Igreja dos Pobres e da Igreja do trabalho. Parabéns.
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