SAUDADES DO INTERIOR
Por
Dalinha Catunda
Sair do interior e enfrentar a cidade grande é uma missão quase impossível. Foi uma peleja danada. Acenos e apitos de trem ainda martelam em minha cabeça num eterno revirar de saudades.
Cidade grande, vida nova, novos e estranhos costumes. Cama de solteiro afugentando-me o sono. A lembrança saudosa da rede, o pé na parede e o balançado a me embalar noite à dentro. A labareda da lamparina acesa atentando minha memória, ardendo em meu pensamento. Faltava a cantiga de grilo, o zum-zum-zum da muriçoca e o cantar repetido do galo.
Um pão diferente que em nada lembrava o pão do Vicente. (O Vicente, que era mudo, e depois falou, quando Nossa senhora em sua peregrinação passou por Ipueiras fazendo seus milagres.). Se bem que, lá, o próprio pão, era artigo de luxo, pois muitas vezes escapei, com jerimum com leite, batata doce com leite, cuscuz com leite ou tapioca com manteiga da terra. Escapei no modo de dizer, pois eu achava mesmo era bom. De vez em quando alguém mangava de mim.
A nordestinidade denunciada na voz, era o motivo da mangação. Derramar, frouxo, acochado, bulir, eu tive que tirar do meu repertório. O Vixe eu tentei, mas era só me assustar que saia , Vixe Maria!!!!! Desisti...Ainda bem que não fiz como uma amiga que perguntou onde era o monturo pra rebolar o lixo no mato.
Mas certamente dei outras mancadas. A única coisa que realmente me deixou feliz foi deixar o penico pra trás. Aquilo era uma esculhambação, eu nunca acertava uma, e foi assim cheguei a conclusão que mijar fora do penico era minha sina. E a Sentina? pense!!! Era ao mesmo tempo sentina e banheiro. No final do muro, ou seja, nos fundos do quintal. No meio, aquele bojo quadrado com um buraco no meio.
Vamos ser sinceros, até que a posição facilitava o serviço. Num canto, reservado ao banho, uma tacha, que era um grande depósito de água, feito de barro, com uma cuia boiando, cuia esta, que servia para rebolar água no corpo. Um sabão feito em casa e uma bucha de pepino, e o kit banho tava completo.
Lembro-me como se fosse hoje dos remédios: Pra catarro nos peito, mastruz com leite. Pra inflamação de mulher, garrafada de malva ou casca de aroeira. Quando as crianças tinham febre era um chazinho de folhas de laranja com melhoral e sempre tinha um bolachinha para adular. O que eu não me conformava era com os purgantes que de tempos em tempos éramos obrigados a tomar. Chá de cidreira eu gostava, e também de erva-doce que era feito para os bebês.
E os carões? Meninos deixem de chafurdo! Olha esse furdunço aí! Essas tampas não deixam de me atentar! Depois partiam para os bofetes e puxões de orelhas, e muitas vezes terminava em pisas.
Hoje eu posso dizer que aprendi muito na cidade grande, principalmente a sentir saudades do meu interior.
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Obs.: crônica publicada anteriormente nos blogs:
http://primeiracoluna.blogspot.com/,
http://www.grupos.com.br/blog/ipueiras
e http://cantinhodadalinha.blogspot.com/
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Foto do banho de rio: http://www.aultimaarcadenoe.com/
Foto da rede de dormir: www.inteligentesite.com.br
Foto do penico: www.aderecos.com
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Maria de Lourdes Aragão Catunda – Poetisa, escritora e cordelista. Nascida e criada em Ipueiras-CE, conhecida popularmente como Dalinha Catunda, vive atualmente no Rio de Janeiro. Publica nos jornais "Diário do Nordeste" e "O Povo", nas revistas "Cidade Universidade" e "Municípios" e nos blogs: Primeira Coluna, Ipueiras e Ethos-Paidéia. É co-gestora convidada do blog Suaveolens
3 Comentários:
Dalinha é uma nordestina que mesmo longe nunca esqueceu suas origens, dela cria textos e versos, e os faz com grande estilo e elegância.Muriçoca, grilo, pinico, pão e Vicente, são uma mistura, amálgama quase criptográfica da Ipueiras tão distante fisicamente mas dela tão perto espiritualmente.
O anônimo foi o Bérgson que ainda está aprendendo a usar este espaço para comentar, desculpe.
Dalinha é sinônimo de cultura nordestina. Vamos reprisá-la sempre. Parabéns.
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