Por
Carlito Matos
Até onde a memória pôde me levar, hoje acordei pensando nela. Juliana. A minha Nanã. Pequenina. Pele escura. Cabelos grandes e ondulados. Boca pequena. Cachimbo em um dos grandes bolsos do surrado vestido de chita. Meus pais viviam um terrível drama com a doença do irmão Rui, acometido pelo terrível calasar, contraído através de um besouro. Morávamos em Ipueiras, àquela época com pouquíssimos recursos médicos, o que obrigava as idas e vindas dos pais a Fortaleza, em busca do tratamento para o Rui. Não havia tempo para cuidar dos outros quatro. Eu, Lalu, Tereza e Ana Elza. Nanã " botava " água para os potes do casarão. Descia aos Barreiros e tirava das cacimbas a água de beber, cozinhar e tomar banho. Subia o morro com a lata na cabeça, protegida por uma rodilha de pano. Fazia isso várias vezes por dia. Da tarefa tirava o sustento da família, na pequenina casa da Rua do Arco de Nossa Senhora de Fátima.
Eu tinha uns cinco anos de idade quando fui adotado pela Nanã Capêta, apelido herdado do marido Cesário, homem que tomava porres homéricos e fazia frequentes visitas ao inferno, contando depois, em altas rodas, seus encontros com Satanás e pessoas ilustres da cidade, já falecidas. Pressionado por familiares de um dos citados, não perdeu tempo. NUM DIXE QUE VI O CUMPADE FULANO. DIXE QUE PREGUNTARUM POR ELE...!!!
Eu era louco por ela. Me dava banho, me vestia. Fazia a minha própria comida e ficava ao lado me olhando. Come, menino! Olha essa magreza! Tu fica cálido! Passei a ajudá-la nos transportes da água, seguindo-a aos Barreiros, riscando o chão com um garrancho de marmeleiro. Logo ganhei dela meu cavalo-de-pau, tirado da carnaubeira perto rio Jatobá. Sem os espinhos, dois cortes na base e um cordão. Pronto. Meu cavalo me levava pra cima e pra baixo. Seguindo os passos da Nanã e seus rastros d'água, deixados pelo balanço da lata sobre o frágil corpo.
Na sua humilde casinha, comi a mais gostosa das comidas. Feijão, toucinho e farinha. Amassava a mistura entre os dedos e me entragava um capitão. Uma verdadeira iguaria. Sem comparação. Tomava café com rapadura e farinha. Outra delícia. Na minha casa não tinha aquilo. Pra completar a merenda, ia comprar brôas feitinhas na hora pelo Olegário.
Meu irmãozinho Rui não resistiu à doença e faleceu um ano depois. Mas a Nanã continuou minha segunda mãe até meus 11 anos de idade, quando fomos morar em Santos, São Paulo, por conta de um concurso pra Alfândega ( hoje Receita Federal ) ganho por meu pai. Primeiro lugar em todo Brasil. Voltamos um ano depois. 1963. Porém pra Fortaleza.
Passava minhas férias de meio e fim de ano em Ipueiras. Sempre encontrando a Nanã, já velhinha e doente. -Meu fi me dê um dinheirim peu comprar uns cachetes pra mim. Tô tão doente.! Em 1980, em lua-de-mel por Ipueiras, a vi pela última vez. Acho que tinha uns 80 anos e realmente estava em estado de alta fragilidade. Me abraçou tanto! Me desejou tanta felicidade!
Pouco tempo depois, Deus a chamou. Morava em Uberlândia, Minas, quando minha mãe me telefonou com a notícia. Havia sonhado com ela dias antes. Fumando o seu cachimbo e me pedindo uns trocados pra comprar cachete. Não a esqueço nunca e a cada pensamento eu mais entendo o que é amor verdadeiro. Cuida de mim até hoje e me ajuda a procurar ser cada vez melhor. Porque ela foi a pessoa mais importante da minha vida.
Um beijo, Nanã. Capêta.
Foto: museu de Ipueiras com as fotos das personalidades históricas da cidade
Carlos Maria Moreira da Costa Matos (Carlito Matos): É ipueirense, filho do poeta ipueirense José Costa Matos e da ipueirense Alderi Moreira da Costa Matos. Carlito formou-se Engenheiro de Pesca no primeiro semestre de 1976, na Universidade Federal do Ceará, foi pesquisador da SUDEPE em Brasília e superintendente do IBAMA no Ceará na virada do milênio. Dedica-se hoje também à música e à poesia. Para o crítico Paulo Eduardo Mendes, Juiz de Direito e jornalista, “Carlito Matos é um vitorioso no campo das escalas musicais. Músico de escol patrulhando temas de vocalização capaz de honrar sua gleba.
1 Comentários:
Linda crônica primo! Parabéns!
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