REAL AERONORTE POUSANDO NO CRATO
O cariri cearense faz parte da história nacional desde o século XIX. Aliás, isso quer dizer que desde sempre, uma vez que o nacional brasileiro só passou a existir de fato neste século. Em outras palavras o que era nacional e fazia parte da evolução histórica do mundo sempre esteve presente na região. Independente de no início a cidade do Crato ser muito acanhada, também o era o império brasileiro inteiro. Então o fato é sempre estivemos pari passu com a dinâmica do mundo. O que surpreende não é o fato, mas a geografia onde tal ocorria. O cariri fica no centro do hinterland nordestino (assim a chamava Padre Gomes) distante do arco do litoral do qual se afasta na média de 650 quilômetros ou mais.
Os modernos meios de transporte, como o trem e caminhões, facilitaram enormemente este papel da região. A avidez por meios rápidos foi total. Nada diferente do que ocorreu em todas as populações do século XX, mas de muito maior significado, foi o advento do avião, das fabricantes dos mesmos e a conseqüente aviação comercial e militar. Até hoje ainda repercute na cidade do Crato o histórico do seu filho Brigadeiro Zé Macedo, dada a importância que teve no nosso imaginário tanto subjetivo como objetivo (algo que considerar sobre o bombardeio aos retirantes do Caldeirão?). Mas o tema mesmo é o avião e sendo avião fazer um guisado composto de memória e pesquisa.
Gledson, sua vírgula de barba sob o lábio inferior. A camioneta, ou sopa, ou o que nome se tenha, que era exclusivamente para idas e vindas ao Aeroporto Nossa Senhora de Fátima bem no cimo da chapada do Araripe. Isso numa época em que as chuvas atolavam os veículos que pretendiam subir a ladeira das guaribas. Quem há de esquecer a freqüência com que Cândido Figueiredo, magro, risonho, alegre com a vida, subia até o aeroporto para pegar mercadoria. Pois bem, Cândido é responsável pelo maior mito automobilístico que até hoje guardo: um Cadilac Rabo de Peixe, conversível, verde claro. E aí João que furo nos demos, porque não conseguimos guardar até hoje aquele carro do teu pai? Você não teria fotos do mesmo? Envie para o Dihelson que ele publica neste tapete persa em que se tornou a rede do blog do Crato. Mas o Dihelson é isso mesmo: tem mania de grandeza como o Crato.
Aos mais antigos que eu e meus contemporâneos sabe o que me veio na memória? O Coringa da Real Aerovias e depois Real Aeronorte posto bem na frente da aeronave. O símbolo da companhia era um corcunda que eu não associava ao baralho, remetia-me ao romance de Victo Hugo. Dizem que o coringa se originou de duas lendas: uma em que um dos fundadores da Real e sua verdadeira alma, o comandante Lineu Gomes, ex-piloto da TACA, gostava de jogar baralho e o coringa valia qualquer coisa, era a sorte no baralho. Ele teria comprado a primeira aeronave da companhia no carteado. Mas outra versão há que o coringa era uma referência a um funcionário corcunda da empresa que era uma espécie de mascote da sorte do próprio Lineu.
A Real teve uma história não muito longa: durou 14 anos, de 1946 até 1960. Aliás, esta é a natureza das companhias aéreas: quantas gigantes não já sucumbiram nos últimos 60 anos? No entanto sua história é fantástica: chegou a ter em sua frota 116 aeronaves, sendo classificada pela IATA na sétima posição do ranking mundial. A empresa se expandiu comprando outras e se associando a gigantes, terminando por formar um consórcio sob a bandeira dela. Ela é uma das primeiras empresas brasileiras a de fato fazer rotas internacionais regulares, como Miami e Chicago no ano de 1956. Foi uma aviação pioneira na travessia do Pacífico, quando recebeu quatro Constellations, inaugurou um vôo para o Japão, isso numa época em que se voava naquela imensidão sem horizontes com um sextante e fazendo duas escalas a partir dos EUA: Honolulu e Ilha Wake.
A Real também foi a primeira a ter vôos regulares para Brasília ainda em sua fase de construção (1957). Chega o ano de 1960, a companhia comemora seu aniversário com cifras impressionantes: 12 milhões de passageiros transportados, rotas para sete países e uma das melhores estruturas do país (escola própria para formação de suas equipes, mais de um milhão de horas voadas etc.). Neste ano três desastres abalam a empresa. O primeiro deles ocorreu em fevereiro, uma aeronave vinda de Campos no Estado Rio de Janeiro choca-se com um avião militar americano que vinha de Buenos Aires para o Galeão. Morrem 26 pessoas na aeronave da Real e 35 no avião americano. A investigação da Aeronáutica apontou que a culpa teria sido do piloto americano, mas a investigação independente da US Navy culpou as condições de controle do tráfico aéreo brasileira, eximindo os dois pilotos. Esta história faz parte das referências primeiras para o exame do recente desastre da Gol.
Em junho de 1960 uma aeronave Convair 340 da Real realizando uma aproximação noturna do aeroporto Santos Dumont no Rio, chocou-se com o mar, morrendo 49 passageiros e 4 tripulantes. Este faz parte dos grandes desastres em número de vítimas da aviação comercial brasileira no século XX. Não tive como comprovar, foi impossível achar a lista de passageiros, mas acho que neste acidente morreu um comerciante do Crato, cujo nome me foge à memória agora, o qual era dono de um posto de gasolina Texaco bem no final da rua da Vala. O terceiro acidente foi na Serra do Cachimbo no Pará, numa rota entre Manaus e Cuiabá, quando o avião começou a perder altura, a tripulação ainda jogou a carga fora, mas não conseguiu evitar o choque com a serra.
A Real é vendida por mais de dois bilhões de cruzeiros para a VARIG numa transação que envolveria "forças ocultas", as mesmas que logo a seguir estariam na renúncia do Presidente Jânio Quadros segundo explicações dele mesmo. A transação de compra foi rápida e VARIG assumiu toda a malha e as aeronaves e logo os cratenses começaram a observar nova bandeira comercial em seu aeroporto. Aquilo também marcou a transitoriedade das empresas filhas dos homens e como eles mortais: Lineu Gomes estava no fim da vida.
Foto do avião CONVAIR 340: site wonwinglo.scale-models
José do Vale Pinheiro Feitosa – nascido na cidade de Crato, Ceará, em dezembro de 1948, morando no Rio de Janeiro há 34 anos. Médico do Ministério da Saúde. Publicou o Romance Paracuru em 2003. Assina matérias em alguns blogs e jornais. Em literatura agita crônicas, contos, poesia e ensaios de temas variados. Gosta de pintar e tem alguns trabalhos de escultura. Colabora no Blog da Cidade do Crato.
8 Comentários:
Um trabalho de pesquisa e ao mesmo tempo uma crônica nostálgica. Este trabalho de José do Vale poderiamos chamar de clássico, sem nenhum favor. Valeu.
Gostei da materia sobre a REAL AEROVIAS. Fui diretor da mesma de 1953 até 1961 quando meu sogro, Cmte Linneu Gomes vendeu suas ações `a VARIG.
Me permitiria agregar alguns fatos esclarecedores `a cronica do Dr. José do Vale Pinheiro Feitosa.
Primeiro desejo relatar a verdadeira historia do Corcundinha da REAL.
O "corcundinha" foi criado pelo Sr. Natale, imigrante italiano, anarquista fanatico, que possuia uma pequena metalurgica fabricante de medalhas e taças comemorativas na Praça Princesa Isabel, no bairro dos Campos Eliseos em São Paulo.
Natale sugeriu a Linneu e ao Cmte Vicente Mamana
( outro criador da REAL ) que deveriam distribuir um brinde aos primeiros passageiros da linha SãoPaulo-Rio que iria inaugurar a recem-criada companhia aérea. Linneu e Mamana estavam encomendando a Natale os dez primeiros distintivos para os quepis e peito de seus uniformes.
Encomendaram tambem cem brindes: chaveiros com medalhas do Corcundinha em alto-relevo. Natale fabricou e entregou por sua conta e risco quinhentos chaveiros dizendo que os quatrocentos "ultra-petito" , a REAL poderia pagar quando pudesse, se o quizesse..
Natale como anarquista e anti-monarquista, sugeriu o corcundinha como o bobo da corte da opera italiana Rigoleto como simbolo ironico da realeza...
Como era uma figura feia e corcunda, os passageiros agraciados com aqueles pequenos chaveiros perguntavam a razão de tão estranho simbolo, ao que Linneu respondia que eram simbolos da Sorte.
Eu mesmo como diretor comercial da REAL, encomendei mais de 2.000.000 daqueles famosos chaveirinhos que começaram com a medalha medindo de 5 x 3 cm e terminaram ( por razões de custo) em medalhinhas de 3 x 1,5 cm.
A REAL adquiriu e incorporou varias outras Cias aéreas formando o Consorcio REAL-AEROVIAS-NACIONAL que chegou a servir 240 cidades no Brasil e no exterior. A REAL voava 10.000 horas por mez, e empregava 3.500 functionaries diretos alem dos funcionarios de seus agentes.
O Consorcio Real chegou a deter 54% DE TODO TRAFEGO AEREO NACIONAL em 1958 e 1959.
Atenciosamente
Luiz Carlos Marinho de Andrade.
Luiz Carlos Marinho de Andrade! Muito obrigado! Seu brilhante depoimento enriquece substancialmente a matéria e nos comove! Um abraço.
Em 1956, aos 6 anos de idade fiz meu primero voo como ássageiro e foi pela Real num DC3 e depois num Convair 340 entre Rib Preto e Rio. Jamais me esquecerei daquela emoção de la de cima ver as casas pequenininhas la em baixo bem como de olhar o Atlantico e até ver uma baleia saltando no mar.., foi incrível!
meu pai trabalhou no aeroporto nossa senhora de fatima, na real transportes aerios e depois na varig, até o fechamento. ainda tenho o registro na carteira profissional do meu falecido pai, muitos outros trabalhou também. no aeroporto, meu pai relatava que tinha que acender candeeiros a noite e que tinham que completar o peso do avião com sacos de areias. colocando ou retirando. da dificuldade da estrada, vindo pelo campo alegre. do grande numero de passageiros. ainda conseguir ver o aeroporto bem conservado no ano de 1982 ou 1983, no ano de 1994 ou 1995 teve o chama, festival de musica nesse espaço.
Dr luis carlos meu pai o Sr Demetrio ulaf trabalhou em uma de suas empresas era mestre de obra e tinha uma grande admiração pelo Sr
Abraço
Gilberto ulaf
Era menino em Fortaleza me lembro da propaganda no Rádio "VOE PELA REAL" tendo como Agente comercial no Ceará a firma Edgard Albuquerque , estou errado Feitosa?
Gostei muito de ler esse blog. Trouxe-me memórias de minha infância e adolescência, época que meu pai fez diversas viagens pela REAL, e sempre nos trazia uma cartelinha de 'mentex'. Sou de Curitiba. Lembro do 'corcundinha' da Real!
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