A LAGOA DA BESTA
Luiz Alpiano Viana
Meu avô cavou uma cacimba no leito do Rio Jatobá, exclusivamente para dar de beber aos animais dos quais cuidava periodicamente na propriedade. Entre outras coisas ele era também um domador de cavalos. Adestrava-os conforme o pedido de seu dono.
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A cacimba ficava a uns dois km do cercado da pastagem. Todos os dias fazíamos o mesmo caminho tocando jegues, cavalos e mulas. O velho nos ordenava levar os bichos ao bebedouro no horário de meio dia, sol a pino. De tanto gado que tratava, o único animal de seu era uma égua meio caduca que não estranhava cinco meninos montados. Disputávamos sua montaria às pressas. Quem ia, quem não ia, era uma questão de chegar primeiro. Os guris ela transportava de ida e volta à cacimba sem dar um trote sequer. Caminhava simplesmente como quem diz: Quem corre cansa. Entendíamos também que tinha cuidado para não nos machucar. Nem todos os humanos têm instinto afetivo com suas crias.
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O tempo passava e os garotos cresciam sem parar, e cada dia eles aumentavam de peso, mas mesmo assim ela os carregava sem reclamar. De longe se via um cordão de menino trepado no seu dorso. Ninguém montava outro animal porque a maioria do lote era desconhecida e arisca. Somente ela não se opunha aos mandos da criançada. Os indiozinhos nus e pés descalços adoravam o vai-e-vem diário à fonte d'água. Até os da vizinhança participavam alegres do comboio. Uma aventura que não tinha diferença da vida numa aldeia indígena.
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Os quase cem animais enchiam a estrada. Uma nuvem de poeira levantava e as folhas das àrvores que ladeavam o caminho tinham uma coloração avermelhada e suja. O som dos chocalhos e a pisada forte do gado produziam um barulho ensurdecedor que me lembrava o estouro de uma manada de búfalos selvagens.
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A besta era mesmo uma besta!
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Um dia quando nos levava de volta para casa, escorregou na lama da lagoa. Desse escorregão não mais se levantou. E como não existiam naquela época os recursos veterinários que temos hoje, não salvamos a coitada! O jeito derrengado e escarrapachado dentro da lagoa demonstrava que a dor era insuportável. As lágrimas escorriam em gotículas até as narinas. Respirava com esforço e num tom abafado que se ouvia de longe o ruído. Ela ficou mais de uma semana sem beber e sem comer porque era impossível fazê-lo na posição em que se encontrava. E aos poucos foi enfraquecendo, e se desidratava a cada dia, e morreu atolada no lamaçal.
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Não tardou, os urubus apareceram e começaram as tarefas de limpeza da área. À distância, víamos uma tuia de carnívoros famintos, desesperados por um pedaço de carne. Assistimos àquela cena cortados de dó. Finalmente é assim a Lei de sobrevivência da selva.
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Todos os anos meu irmão plantava naquela lagoa, arroz, e, nos aceiros – que são áreas menos úmidas - conjugava milho, feijão e melancia. Em honra à égua não mais plantou um pé de couve, admitindo que o lugar tinha que ser preservado. Criou-se, portanto, uma lenda de que a besta, revoltada, destruiria as plantações. E nós, que éramos seus passageiros no dia do acidente, nos culpávamos pelo que acontecera.
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Ficou, pois, determinado que a única lavoura a ser feita naquele espaço teria que ser capim de boa qualidade para matar a fome da miserável beroba.
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Há bem pouco tempo obedeciam-se essas regras. Não sei se ainda hoje elas vigem.
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Algumas pessoas afirmam tê-la visto troteando nas várzeas, altas horas da noite, com vários meninos a cavalo. Como crianças, vivíamos muito assustados. A estória se espalhou com rapidez. Nossa preocupação era tão grande que qualquer tropel seria o espírito eqüino em evidência. Os cavaleiros que galopavam pela estrada traziam-nos a sensação de medo. - É ela, só pode ser ela, - pensávamos ao mesmo tempo em que procurávamos abrigo.
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Com a morte do animal de estimação, meu avô batizou a lagoa de Lagoa da Besta que serve até hoje de ponto de referência para os mateiros e lenhadores da região. Esse nome permanece.
A égua realmente existiu e morreu assim mesmo! A estória é verdadeira, e aconteceu no Pai Mané onde nasci e morei até os onze anos de idade
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5 Comentários:
Bem vindo Alpiano! Já fazia algum tempo que não líamos sua estórias. E esta é espacialmente tocante. Feliz regresso!
Uma excelente crônica, acho importantes pessoas do quilate de Alpiano se interessarem em resgates ricos e detalhistas como este, feito com sobriedade e acima de tudo finalidade. Está de parabéns o autor e nós que temos o prazer de lê-lo e guardamos na memória e no papel esta prazerosa narrativa.
Bérgson Frota
Alpiano já estava fazendo falta. Suas crônicas bem detalhadas de quem realmente viveu tais histórias
nos prende a atenção.
Bom tê-lo em nosso time, pois joga um bolão.
Um abraço,
dalinha Catunda
Luiz,meu amor!adorei ver esse seu conto publicado,pois já estava com saudades dos seus escritos neste espaço!Parabéns.Beijo Graça
Luiz,meu querido, você esta de parabéns, seus contos prendem a atenção e conseguem fazer a gente vivenciar aquele tempo magnífico, continue a escrever pois é muito bom e tocante suas histórias. Odete- São Paulo.
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