CRÔNICAS SEM RESPOSTAS
Raymundo Netto
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“Raymundo, amigo, saudações. Faz tempo que sabemos da existência um do outro, mas nunca fomos apresentados, embora o deseje muito. Penso que bom mesmo de escrever é carta: tem-se a certeza de um leitor e a possibilidade de uma resposta, não é?
Eu, você bem sabe, escrevi neste mesmo jornal. Foram vinte e seis anos de boa conversa de terraço, sem rebuscados nem preciosismos, denunciando a minha origem sertaneja. Veja lá que um dia, no tempo de menino, quiseram me curar da ignorância congênita, colocando-me um livro nas mãos, e me deram o mundo de presente. Contudo, depois de uma ‘papeira’, contraí o vício, incurável, do papel de jornal.
Ao sentir um inesperado aroma de café torrado em casa, escorreguei, devagar, os olhos do papel. Misteriosamente, percebi-me numa sala pequena, sem janelas, a não ser para a rua, onde um grilo cantava soluçante.
No corredor e na sala, enfileiravam-se gaiolas de arames com graúnas, golinhas, sabiás, papa-capins e periquitos australianos azuis. Mona, a gatinha, ronronava sobre um birô. Debaixo dele, Dique, um cãozinho preto de patas brancas, contava histórias de seu Pedro, o farmacêutico. À cozinha, um poleiro papagaiava vazio.
Não avistando ninguém, abri a meia porta e entrei em um dos quartos. Do toca-discos pude ouvir Piaf cantar, como em Paris, “Non, je ne regrette rien”. Próximo à cama, o par de chinelos velhos. Sobre a colcha vermelha, um pijama; a rede de corda pendurada no armador. Noutra parede, o retrato de um senhor careca de óculos quadrados. Encostado ao guarda-roupa, uma mala — cheia de cartões postais da cidade — forrada com papel brilhante colorido de ramagens e cantoneiras de metal.
Voltei para sala e corri à janela onde avistei, logo à frente, a praça da Escola Normal rodeada por oitizeiros que acolhiam ninhos de fogo-pagou. Um verde Volks 63 descansava à rua pequena onde cães ladravam em ruidosa assembléia. Do corredor estreito veio uma lufada de vento de quintal, e nele pude ouvir a voz missivista do Milton a desatar memórias afetivas:
“Partir é bom, ficar é triste, voltar é uma beleza. Ah, como é bom voltar à Fortaleza de encantamentos, querenças e quenturas. Vou e volto porque aqui é a minha casa, minha rua, minha praça e minha gente. Sinto uma ternura que deita na alma e me enche de melancolia.
Ora, Raymundo, todos cantam a sua terra, também somos filhos de Deus, ah, que também cantemos a nossa! Afinal, tudo passa, passa mesmo. Esta cidade que estão cobrindo de asfalto e plantando arranha-céus ainda é a nossa cidade. Não há motivos para comemorar, eu bem sei, e como sei, principalmente se os ‘detalhes tão pequenos de nós dois’ estão sendo deixados de lado, mas aconselho: melhor será tocar para frente, olhando menos o passado, curtindo muito o presente e preocupando-nos só um pouco com o futuro. A certeza do irrecuperável dói muito. Aliás, tudo dói, quando vira saudade.”
— Sim, Milton, porém nesse ponto sou como você: não faço questão de ganhar, mas faço questão de não perder! — pensei, diante das paredes mudas.
Juntando tudo no pensamento, e em busca de ar, saí para a calçada. Contudo, lá de fora, a casa do Milton não parecia mais a mesma. A fachada, coberta de granito escuro e vitrais, ostentava uma placa: “escritório de advocacia”. Tentei entrar novamente, quando uma recepcionista me atendeu. Não havia mais nada lá. Nada. Procurei nos bolsos, a carta. Li:
Um dia qualquer, desde que seja 17 de abril de 2008.
Do amigo M. D.”
Chovia na cidade e, ali, a torre da igreja Pequeno Grande apontava aos céus, acenando o lenço branco da saudade e abençoando “a bendita solidão dos que sabem ser sós”. Tudo passa, passa mesmo. Que Deus a proteja de nós, Fortaleza.
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(*) apelido da amiga Alba Frota.
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3 Comentários:
Ainda em comemoração ao aniversário de Forteleza, a bela e saudosa crônica que nos enviou o escritor cearense Raymundo Netto. Ao ilustre amigo Raymundo, nossos agradecimentos.Desfrutem.
Jean Kleber,
Muito bom desfrutar de mais uma crônica de Raimundo Neto.É uma crônica saudosista, sem ser "melosa" bem gostosa de se aprecisar.
Um abraço,
Dalinha Catunda
Adorei sua crônica (este gênero que amo de paixão e quero aprender um dia) e ainda com uma carta - meu grande vício é escrever cartas, mesmo hoje com e-mail's, celular e tudo mais, continuo escrevendo cartas. Parabéns por este texto maravilhoso. Abraços e boa tarde!
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