VAI UM CAFÉ AÍ? (uma memória cearense)
Jean Kleber Mattos
Meu pai, seu Mattos, costumava levar-me, eu criança, ao histórico estádio Presidente Vargas em Fortaleza, para ver jogos de futebol, sempre que o Ceará, nosso time do coração, disputava. Era uma saborosa aventura onde vendedores de roletes de cana e laranjas revezavam-se com seus pregões típicos.
Os impropérios dos torcedores também me divertiam. O tempo passou, eu migrei para outras terras e, passadas décadas, voltando à Fortaleza, resolvi conhecer o novo estádio: o “Castelão”. Chegamos eu e meu pai atrasados para a partida noturna e vimos os torcedores entrando livremente. Perguntei se não precisava pagar e me disseram que já haviam transcorrido vinte minutos de partida, tempo a partir do qual a entrada era franca. Ótimo.
Adentramos ao belo e bem iluminado estádio e passamos a desfrutar do espetáculo. Súbito passou-nos ao lado, na arquibancada, um vendedor de café e cigarros. Trazia uma larga e funda bandeja de plástico alçada ao pescoço, com dois compartimentos. Um para cigarros, outro para café. No compartimento do café, duas garrafas térmicas: café doce e café amargo. Numa coluna bem engendrada, copinhos descartáveis.
Compramos café e eu avisei a seu Mattos que iria provocar uma resposta do vendedor ao pagar a conta. Dito e feito. Paguei o café e elogiei a organização e a limpeza dos artefatos do vendedor. Ele agradeceu e eu completei:
- Amigo, café bom mesmo eu tomei no passado, no Passeio Público! O senhor lembra daquelas mulheres que vendiam café em chaleiras envoltas em panos, com uma lata cheia d’água à tiracolo para lavar as xícaras? O homem olhou para o alto como se tentasse relembrar. Imaginei que à sua mente assomavam as imagens das gordas mulheres com saias curtíssimas, oriundas do Arraial Moura Brasil, bairro vizinho, onde cresciam manchas de baixo meretrício.
Ele me olhou de frente e sentenciou.
- Eu já sei do que o senhor gosta!
-Do que?-perguntei
- O senhor gosta mesmo é de ver fundo de calça!
Seu Mattos não conteve a gargalhada.
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Fotos
Passeio Público:
http://www.vitruvius.com.br/minhacidade/mc011/mc011_01.jpg
Café: http://www.cafecomsolucoes.com.br/formulario.php
Vendedor de café do século XVIII (Espanha):
http://www.nodo50.org/espanica/tomando.html#ambulante
Estádio Presidente Vargas à noite:
http://www.fussballtempel.net/conmebol/BRA/Presidente_Vargas2.jpg
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Jean Kleber de Abreu Mattos, cearense, nascido em Fortaleza, viveu em Ipueiras dos dois aos oito anos de idade. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco. Atualmente doutor em fitopatologia, é professor da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.
5 Comentários:
Um texto cativante e interessante, acho que também o que impressionou o vendedor de café foi que o passeio público, presumo eu já na época estava abandonado, coisa que de fato hoje se concretizou com sua total marginalização. Um resgate de grande valor e acima de tudo sensibilidade.
Bérgson Frota
Você transforma um episódio do cotidiano em trabalho de arte. Parabéns por mais um maravilhoso e divertido texto.
Beijão.
Heloisa Helena
Crônica leve, gostosa de se ler, coisas do dia a dia, que em seu relato ganham um colorido especial.
Parabéns e continue nos pesenteando com seus textos.
Dalinha Catunda
Do café nada, o interesse era nas muié.Rsrsrsrsrs. Coisas boas da vida tem que ser apreciada.
Gosto de textos leves e cheios de simplicidade. A vida é tão rápida e são momentos como estes que nos fazem pensar se não deveríamos viver cada minuto que temos com toda a alegria e a intensidade que eles contêm.
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