Por
Jean Kleber Mattos
Meu pai tinha um amigo que morava na serra próxima a Ipueiras. A serra fazia parte do
complexo da Ibiapaba. Quando descia à Ipueiras, seu ponto principal era o bar de seu Guarani onde bebia e bebia como se comemorasse uma vitória. Uma vez ébrio, com o bar cheio de gente, tirava do bolso um maço de notas e as atirava para o alto dizendo: “eu tenho dinheiro !”.
Seu Guarani então tomava as providências. Não deixava ninguém pegar qualquer nota. Juntava-as todas e as enviava ao meu pai por um mensageiro ocasional, pois sabia que a próxima parada do ébrio cidadão seria a minha casa. Meu pai esperava pacientemente a volta do amigo à sobriedade para então entregar-lhe o dinheiro.
Seu Guarani era um dos esteios da decência naquela cidade. Como disse eu no dia do anúncio de seu desencarne: "seu" Guaraní tem mesma idade de meu pai, "seu" Matos. Contemporâneos. O seu estabelecimento era o grande bar da cidade que para mim, na minha infância, era o castelo dos doces e refrescos. Meu pai lhe tinha especial amizade e sobretudo ressaltava para nós o bom humor de seu Guarani. Um grande Ipueirense. Uma saudade.”
Lembro-me de um dia em lá chegando ainda criança, certamente para comprar bolachas ou outro artigo a mando de meu pai, vi o telegrafista da cidade saboreando um daqueles doces de leite de fabricação caseira, clarinho. Daqueles de textura “arenosa”. Impossível não olhar. O homem, citadino e cheio de maneiras que era, viu meu olhar e educadamente perguntou, como se dizia naqueles tempos: “é servido?”.“Não, obrigado!”, respondi, conforme minha mãe me ensinara.
Todos freqüentavam o bar de seu Guarani. Roceiros e intelectuais marcavam presença. Era um dos redutos mais democráticos depois da Igreja. Homem de poucas letras, demostrava uma inteligência ímpar e um bom humor elogiados por todos. Histórias sobre suas respostas espirituosas fazem hoje parte do acervo de casos históricos da cidade.
Do discurso obituário de sua filha Socorro ("Corrinha") na missa de requiem, publicado por Marcondes Rosa no “Grupo Ipueiras”, destaco os trechos que mais me tocaram:
“Meu pai ( .... ) era de uma franqueza admirável. Sua pedagogia como pai era a escola da verdade e da honestidade. Respeitava o sofrimento alheio, fazia contribuições generosas e discretas, como era de seu jeito. Suas qualidades humanas só podiam ser mais apreciadas por inteiro em casa. Enfim , um ser compreensivo, tolerante, amigo, humilde, encorajador e sempre lembrado, como um grande conselheiro, nos momentos difíceis na política, no comércio ou mesmo na agricultura. Sua morte causou um grau de emoção em toda cidade, incomum na despedida de uma homem de idade tão avançada”.
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E, afinal, o fecho mais comovente a respeito dos amigos que ainda por aqui ficam e o veneram; “Ser amigo do papai... já é, para nós, um pedaço dele”. Frase semelhante escrevi meses passados, sobre o desencarne de minha mãe, Dona Mundita, em 2004, ao reencontrar Marcondes, Solange, Walmir, Frota Neto, Darci, Silvia e Carmem Mourão, entre outros que dela foram alunos:
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“ Um pouco dela em cada um”...
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Foto 1. Lado da antiga Praça Getúlio Vargas, onde funcionava o bar de "seu" Guarani. Hoje destaca-se a histórica Farmácia São José fundada nos anos 20 do século XX por "seu" Idálio.
Foto 2. "Seu" Guaraní: acervo da família.
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Jean Kleber de Abreu Mattos, cearense, nascido em Fortaleza, viveu em Ipueiras dos dois aos oito anos de idade. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco. Atualmente doutor em fitopatologia, é professor da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.
4 Comentários:
Escrever esta crônica foi para mim especialmente emocionante. A Ipueiras de minha infância permanece para mim como um mistério. Talvez um desafio. Seu Guarani é um dos ícones fundamentais deste enigma.
O exemplo que seu Guarani deixou para todos é de grande importância para a sociedade. Tanto para a geração dele como para as gerações futuras.Parabéns ao cronista que ressaltou tão bem a honestidade e a amizade, qualidades estas atualmente ofuscadas pela ambição e pela competição desmedidas.
Jean, bela crônica sobre este grande homem do bem que foi o Seu Guarani. Agora estando em ips estive com a Corrinha, que embora muito triste como é natural,compareceu a terrinha para a entrega do prêmio Frota Neto de literatura. Quando chegar em BSB relatarei melhor os acontecimentos e as fotos lá registrada. Forte abraço e até breve
Ipueias vai perdendo aos poucos os velhos senhores que fizeram nossa história. Vai ficando mais jovem e menos sábia. Pois, quantas história não enterramos ao enterrar um homem como seu Guarani. Homem que teve uma bodega, uma esquina e como político, uma cidade em suas mãos.
Jean Kleber, muito bonito esse seu relato-verdade.
Um abraço,
Dalinha Catunda
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