Ipueiras do final dos anos 50. Pequenino, a
pele branca já mostrando sinais das rugas, do tempo. Os cabelos, repartidos ao
meio. Os dentes amarelados e apodrecidos pelo fumo, que lançava ao chão em
constantes cusparadas. Calçava chinelos de rabicho e as roupas sobravam no seu
mirrado corpo. Olhos sorridentes. Desconfiados. Antônio Pandeiro era seu nome.
Meu pai sempre reunia a família e os amigos na
calçada da nossa casa, da noitinha até o primeiro sinal de desligamento da luz
da cidade, gerada por um possante motor movido a óleo diesel. E foi numa noite
dessas que apareceu Antonio Pandeiro. Meu pai tinha uma pequena vila de casas
próximas ao sobrado e ele soubera que uma delas estava desocupada. Queria morar
na cidade e desenvolver a sua principal arte: fazer vassouras. Pagaria um
aluguel. Meu pai achou aquilo tudo meio estranho, mas com a intervenção do
Manoel Mombaça, o estrangeiro passou a morar e conviver próximo da gente. Já no
dia seguinte, uma rede, um pote, um fogão de tijolos feito no chão, algumas
panelas e um quadro colorido de São Francisco de Assis na parede de barro
indicavam a ocupação da pequena casa. O chão de terra batida já estava varrido
e devidamente molhado, para evitar a poeira. Dona Nazaré, nova vizinha,
arranjou-lhe uma cadeira de madeira e couro, já bastante velha, onde acomodou
as poucas roupas que possuía. O primeiro almoço ficou por conta de minha mãe.
Dos outros vizinhos, vieram as coisas que manteriam alimentado o pequeno homem
pelos próximos dias. Começando a trabalhar, retribuiria tudo, dizia ele.
Numa manhã de muito sol, seu Antonio Pandeiro
armou-se de uma afiada faca e uma foice adaptada a uma grande haste de
marmeleiro e desceu no rumo das crôas, onde o Rio Jatobá esperava o inverno,
leito de areia, cercado por mangueiras, cajueiros, oiticiqueiras e
carnaubeiras. Sim, carnaubeiras. Delas, Antonio Pandeiro retiraria o seu
sustento no fabrico das vassouras. Com uma habilidade extraordinária, adquirida
pela experiência dos longos anos de ofício, erguia a haste de marmeleiro com a
foice amolada na ponta e, de um golpe só, atingia o olho da carnaubeira e o
jogava ao chão. Com a faca, retirava algum espinho que ficasse. Só terminava o
trabalho quando, depois de várias carnaubeiras, juntava o material necessário
para muitas vassouras.
Na pequena calçada da casa, o velho colocava as palhas para secar, penduradas em finas cordas. Depois, desfiava todas elas, as dobrava e cortava sobre um velho tronco de madeira, amarrando-as acima do meio com uma grande agulha, fio de palha dobrada, de forma a permitir a colocação do pau que serviria de base e apoio para seu uso. E estava pronta a vassoura, que varreria as ruas e as casas da cidade.
A feira da cidade era no sábado e juntava gente e produtos de toda a região. Tudo ali era vendido. Arroz, feijão, farinha, rapadura. Animais vivos e abatidos, galinhas, bodes. Frutas da época, mangas, cajus, cajás, bananas. Doces, bolos, refrescos. E as vassouras do seu Antonio Pandeiro, a grande novidade. Deu meio-dia e não havia mais uma só vassoura. Tudo vendido, hora de contar o dinheiro apurado e comprar arroz, feijão, farinha, toucinho. E preá seco. Esta é uma das mais fortes lembranças daquele tempo. Os preás, animais parecidos com grandes ratos, sem rabo, eram capturados nos matos, geralmente através de armadilhas, como gangorras ou grandes pedras escoradas por um pedaço de pau, colocadas nas suas trilhas. Tratados e abertos pelas costas, eram salgados e secados ao sol, espichados.
Seu Antonio Pandeiro primeiro fazia o feijão, depois o arroz e, por fim, cozinhava os preás, cortados em pequenos pedaços, na água e no sal. Ninguém identificaria os roedores daquele jeito. Atraídos pelo cheiro bom do cozido, eu e meu irmão não perdíamos aquele almoço especial de sábado, dispensando inclusive a bem elaborada comida de nossa casa.
À noite, nos juntávamos na sua calçada, para ouvir histórias fantásticas, onde relatava experiências extraterrestres e afirmava o fim do mundo para muito em breve. Terríveis explosões transformariam tudo em pó, em poeira. Normalmente, íamos dormir apavorados, na incerteza de acordar com o mundo ainda no lugar. “ E conde o mundo triminá....”.
A vida corria sem maiores novidades e seu Antonio já fazia parte da família de todo mundo daquela vila. Parecia feliz naquele lugar simples, trabalhando nas vassouras, comendo e dormindo. Com o corte seletivo aprendido pelas conveniências da vida, os pendões das carnaubeiras brotavam com muita rapidez, assegurando o material necessário à sustentabilidade do negócio. Ecologia pura.
Um dia, chegou pra morar na vila a negra Isabel, que mudou completamente o curso da sua vida. Vistosa e sensual, roupas coladas ao corpo. passou a ser vizinha do vassoureiro.Ela e a filha de uns três anos de idade, negritinha simpática. O marido viera há tempos de Sobral, contratado para defender a seleção local no torneio intermunicipal de futebol. Bom de bola, o craque logo ganhou o reconhecimento do povo pelas vitórias espetaculares que comandava, com gols inesquecíveis sobre o Ipu e Nova Russas, os maiores rivais. Olhares de mulheres bonitas da terra e longos tragos de cachaça desviaram subitamente o seu rumo. Numa bebedeira de domingo, à beira do açude, morreu afogado.
A notícia logo correu o mundo e a negra viera para recolher as coisas do marido, se houvesse. Passava necessidades com a filha. Não tinha como manter-se sozinha. Os vizinhos ajudavam como podiam, mas todos também conviviam com muitas dificuldades. Seu Antonio passou, então, a suprir a negra de um tudo. Comida. Roupas. Aumentou a produção de vassouras e passou a vendê-las em outros dias da semana, casa a casa. Chegara o grande momento de mandar essa solidão maldita para o inferno, sonhava ele. Chamaria a negra para conversar sério, dividir a cama e, por que não? Ter filhos. Ainda era novo. Tinha saúde boa...
Isabel aceitava todas aquelas oferendas de bom grado. Homem bom. Generoso. Desfilava pela cidade dentro das roupas apertadas, compradas pelo protetor. Arrancava fiu-fius da malandragem de rua. Ricos comerciantes da cidade não escondiam olhares de desejo para as ancas generosas da negra. Nas mulheres, provocava inveja. Exploradora. Interesseira. Um homem tão velho...
Numa noite de muitas estrelas, seu Antonio Pandeiro imaginou o seu grande momento. Banho caprichosamente tomado na cacimba do rio, com cuia e sabonete cheiroso. A roupa nova comprada na feira. Cabelo bem aparado e penteado . Entrou na residência da negra como um de casa, sem cerimônias. Sentado em um banquinho de madeira, o velho saboreou um café quentinho. Falou do inverno que se aproximava, da carestia da vida. Até que, aproximando-se da Isabel, abriu-lhe o coração sobre os planos que tinha para ela. Para os dois. Se amancebar. Morar na mesma casa. Ter coisas de homem e mulher. Educar a negritinha. Outros filhos, mais tarde.
Isabel não se conteve e soltou os cachorros em cima do bom Antonio. Bem que desconfiava daquelas gentilezas todas! Uma pobre mulher sem marido. Viúva honesta. Que se desse ao respeito. Quem gostava de velho era fundo de rede. E saísse imediatamente da casa dela, antes que lhe quebrasse a cara. Arrotou todas as humilhações possíveis sobre o pobre homem, que, cabisbaixo, deixou lentamente aquela casa e mergulhou na noite mais escura da sua vida.
De manhã, porta e janela da casinha fechadas não davam qualquer sinal de vida no seu interior. Curioso com aquela ausência anormal, fui até lá e examinei atentamente o local. Foi quando notei a chave na fechadura, na parte de cima da porta, amarrada a um pequeno cordão. Logo descobri que não havia mais nada na casa. Nem seu Antonio, nem suas coisas. Tinha ido embora ainda de madrugada. Não suportara o desprezo de Isabel. Um sonho bonito completamente destruído. Um pedaço bom de vida jogado fora. E muito dinheiro pela janela...
Nunca mais soubemos dele a menor notícia. Com certeza estaria em uma das cidades da região, fazendo e vendendo vassouras. Porém, deixara naquela casinha lembranças que não se apagariam jamais do meu coração de criança. As viagens pelo desconhecido do Universo, na sua visão apocalíptica. O planeta Melcuro engolindo a Terra. A luta do Bem e do Mal. As vassouras barrendo a cidade. Ah! E aquele gostinho inesquecível de preá seco, escaldado na água e no sal...
Foto do prato de um tipo de preá (porquinho da Índia)
site: sidneyrezende.com/noticia/71415+porquinho+da+índia+se+come+em+peru+e+prato+típico+e+e+uma+delicia
Carlito Matos, ipueirense, engenheiro de pesca, cantor, compositor, cronista, filho do poeta Costa Matos, resolveu colaborar conosco. Eis sua primeira crônica no Suaveolens. Seja bem vindo, primo!!!
3 Comentários:
Olá Jean,
Parabéns pela postagem, muito boa.
Carlito, amei seu jeito de contar, prende e encanta
mesmo.
Mais uma vez quero falar da minha felicidade de encontrado você na nossa querida Ipueiras de tantas histórias.
Meu abraço Jean, meu abraço Carlito,
MINHA MARAVILHOSA AMIGA DALINHA, UMA GRANDE BEIJO. CARREGO COMIGO SEUS CORDEIS DE ALTO NÍVEL. FOI BOM REVÊ-LA EM IPUEIRAS, LINDA COMO SEMPRE.TUDO DE BOM. CARLITO MATOS.
PRIMO KLEBER, PARABÉNS PELA QUALIDADE DO SEU BLOG. ESTOU ENCANTADO. EM BREVE MANDAREI MAIS HISTÓRIAS. ABRAÇÃO. CARLITO MATOS.
Postar um comentário
Assinar Postar comentários [Atom]
<< Página inicial