(Publicado anteriormente na revista universitária CABORÈ no. 3 em Fortaleza Ceará em 1967).
PorMarcondes Rosa de Sousa
Abriu bruscamente a porta recebendo uma forte rajada de vento na cara. Arrancou com os dentes a rolha da garrafa que trouxera na mão. Sorveu rápido um longo e último gole de cachaça no próprio gargalo. Jogou fora a garrafa.
Cuspitou à distância pedacinhos de rolha e raspou furioso os beiços na manga da camisa empoeirada do trabalho. Encheu os pulmões do ar frio e escuro da noite, o que lhe deu um pouco de calma.
Era quase tudo silêncio se não fôssem alguns toques retalhados de violão dos meninos do coronel, que, de vez em quando, chegavam misturados com o assobio do vento na palha do canavial, e a lenga-lenga da mulher sempre a reclamar, enquanto empurrava angu de farinha na boca da criança menor. Cala a boca, diabo! Tem fé em Deus. Quando Ele tarda é porque está no caminho — gritou João Biroba, engolindo seco a saliva.
Sentou-se na soleira da porta, puxou a peixeira da bainha no quarto, tirou do bolso um rolo de fumo e começou a espicaçá-lo na palma da mão. A cantilena da mulher continuava. Mulher faladeira é bicho que nem o Cão agüenta. Botava tudo a perder e vinha depois reclamar. Mas o que Deus uniu o homem não separa — já dizia o padre Gonçalo. O jeito era carregar a cruz.
Derramou o fumo amassado na papelina. Colou-a com cuspo e botou o cigarro no canto da boca. “Menino, traz um tição de fogo pro mode acender meu cigarro!” Lá longe aparecia e desaparecia uma luzinha que denundava a casa do coronel, atrás do canavial. A esta hora, todo mundo estava lá ouvindo os meninos cantar. Vinham da capital uma vez por ano... “Leva o tição de volta!” — disse acendendo o cigarro e contaminando o ar de baforadas cheirosas. O vento soprando frio, trazendo o assobio do canavial. Uns meses atrás, tinha esse canavial de meia com o coronel. O diabo da mulher, com a falação, tinha botado tudo a perder. Deitou o pé na estrada, andou mexericando lá pras bandas de riba com as comadres.
D. Maria José, mulher do coronel, não tolerava intrigas nas suas posses. Nem gostava de desaforos. O homem era bom. A mulher dele, o povo contava que tinha um espírito nos couros. O coronel dizia que era doença, que era pra gente aturar. Tinha andado nos melhores doutores. Nada. Que doença que nada. Devia ser mesmo era arte do diango. No dia que estava boa, dava presente a todo morador. Conversava com todo mundo. Mas outros... Liberá mé dominé!
O coronel pagou o serviço todo. Não queria confusão nem os escândalos da mulher. Por isso fazia as vontades dela. Mulher só serve mesmo para atrapalhar os negócios dos homens. Agora morava naquela casinha velha de taipa do compadre Chico Salu, plantando roça numa pontinha de terra. Perdida a esperança de juntar uns trocadinhos para adquirir uma glebazinha qualquer. Pobre só pode ter terra nas unhas e assim mesmo quando lava as mãos o rio carrega.
Saudade do canavial. Se fôsse de dia... A verdura fazia qualquer um perder de vista, O escuro tapava tudo. Agora era confiar em Deus que lhe mandasse chuva para o roçado. Daria ao menos umas terças de farinha para asustança da família. Mas aquele vento... Foi assim na última seca. Mas podia até ser, O céu estava bonito. O vento é o cavalo da chuva, dizia sempre o mestre Joaquim. Talvez ela quisesse se apear e se arranchar umas horas no seu roçado.
Biroba levantou-se. Caminhou para a cozinha. Estava com sede. Enfiou a lata de óleo no pote e a água toda entrou-lhe num gluglu repetido. Enfiou, de novo, a lata no torno da parede e ficou a olhar os meninos que comiam. Sentados, as pernas trançadas, no chão úmido de terra batida, cada um levando, da lata de doce, a colher derramando de feijão com farinha. A mulher, no quartinho, balançando a rede suja e remendada do caçula, pendurada nas ripas do telhado baixo, grunhindo cantigas indecifráveis, entre cuspidelas de fumo mascado.
Pensativo, encaminhou-se, indeciso, para a porta da frente, a balançar a cabeça. Parou. Mais uma vez a noite lhe entrou nos pulmões. A luz da lamparina, do interior da casa, projetava-lhe no terreiro, longa e larga, a sombra. Era forte. No sertão, cansava de pegar à unha boi brabo. Sem gibão, montado no osso, galopando pelas caatingas.
Cavava leira para plantar mandioca por três homens dali da serra. Cortava cana para uma junta de bois puxar no engenho. O dia inteiro. Descia correndo a ladeira quando faltava animal sempre que era preciso chamar urgente médico para alguém que adoecia. Nem burro bom acompanhava. E de noite. Não tinha medo de lobisomem. Quantas vezes, nas noites de lua, durante a seca, não tinha percorrido aquele sertão velho, tangendo pelas estradas o gado faminto para escapar nas soltas do Piauí. E nunca tinha visto visagem ou caipora. Lá existia!... Isto era história de frouxo. Por precaução, andava sempre com peles de fumo no bolso... Gostava quando o patrão, vendo-o trabalhar, dizia para os outros: “este homem é um touro”. Bom homem o coronel. Bom mesmo era viajar com ele no tempo da política, visitando os chefes políticos. Onde chegavam, um almoção. Tempo bom. Mas ai de quem tocasse no coronel. Um minuto e já estava no chão. Biroba garantia.
Era um homem bom o coronel. Os meninos também. Biroba lembrava brava aquela vez que ninguém tinha coragem de bombear veneno na casa de um mangangá. Apostou um conto de réis que matava de enxada, sem veneno sem nada. Arrancou com panela e tudo. “Bicho feroz da molesta é mangangá.” Mas depois que o sangue esquenta... Os meninos foram buscar remédio. Precisava lá remédio...
Outro dia, uma coraizinha que lhe mordeu a mão. Eles lhe deram dinheiro para tomar soro. Matou o bicho na bodega, guardou o resto do dinheiro para comprar de feijão. A mão só fez inchar.
João Biroba olhou o céu. Parece que a chuva tinha emprestado seu cavalo para a lua passear ou vir dar algum recado. Ela vinha mais tarde, com certeza.
A luz da casa do coronel já tinha se apagado. Tudo agora era silêncio. O verde do canavial aos poucos ia surgindo. Biroba fechou vagarosamente, cuidadosamente a porta e foi para o quartinho deitar-se.
Sentou-se na rede, devagar para não balançar os caibros, onde estavam armadas as redes das crianças e da mulher. Benzeu-se e pediu chuva. Sem chuva não tinha serviço. Não aguentava esperar quatro ou cinco meses para poder arrancar a mandioca. A mulher precisando vestido. As duas meninas também. Os meninos com os quartos de fora. Eles podiam esperar uma situação melhor. Menino só presta criado na dureza. Só presta macho pra pegar o pesado de cedo. Biroba andava de bucho de fora com a camisa sem botão. Não podia ir à missa na cidade ou um samba qualquer. Não tinha diversão. Só fazer rasto da casa para o roçado.
Limpou os pés, esfregando um no outro, e se deitou. O diabo do vento já tinha aberto uma brecha nas palhas da cumeeira. Estavam todas já secas. Era preciso cobrir de novo a casa. Ir atrás de palmeiras no tope da serra. Isso era lá trabalho de cristão. O frio mexia com todo mundo no quarto. Biroba tinha de rebocar a parede com algumas mancheias de barro. O resto do feijão estava se acabando. O leite do menino também.
Os chocalhos de um comboio passando longe na estrada. Dormir para no dia seguinte pedir ao coronel uma pontinha de serviço. Tirar o dinheiro adiantado. Comprar feijão e uma caixa daquele leite que os estrangeiros mandam para os pobres.
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Foto do cavalo verde: site emule.com.br
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Marcondes Rosa de Sousa, advogado, é professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade Estadual do Ceará (UECe). É uma das maiores autoridades em educação do Brasil. Ex-presidente do Conselho de Educação do Ceará e do Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação, é Colunista do jornal " O Povo ", onde mantém seus artigos quinzenais.marcondesrosa@gmail.com
1 Comentários:
Um conto de 1967, da autoria do professor Marcondes Rosa de Sousa, Providencialmente resgatado para o Suaveolens de hoje. Parabéns para todos nós.
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