PorRaymundo Netto
Especial para O POVO 14.08.2009
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30 de julho do ano da graça de 2000 e 9. Era Dia Estadual do Patrimônio Cultural do Ceará. O sol brilhava em raios fúlgidos, como diz o Hino. No Fortim holando-português, uma multidão brincante exortava a cal triste da muralha.
Ali tudo começou... Palhaços, feitos gafanhotos em pernas de pau, anunciavam a tragédia: os condenados seriam executados, fuzilados a sangue frio. Tais desgraçados contrariavam Sua Majestade, El-Rei, o Defensor Perpétuo sem fé nem palavras de nosso Brazil. São loucos?! Soldados, pegados em armas e carrancas, ameaçavam sem “quartas paredes” a mostrar as coronhas a todos que se aproximavam: “Não se grude, não. Não se grude!”
Oswald Barroso, com um riso brincante de quem faz teatro por encantamento, dirigia a execução. À frente, dentre os degradados, Ary Sherlock deixara todas as lágrimas nas masmorras dos séculos. Que final dramático para mais de 50 anos de dedicação à arte...
Ao lado de Ary, outros inconsoláveis Carapinimas, Antas, Bolões, Ibiapinas e Mororós seriam arrastados pela cidade de prédios altos patinados pelo sol, a revelar, em cada auto, a nova ordem das coisas.
Otávio, Paulo Renato e Luís Alves, escuderia do Conselho, após a degradação de alvas curtas e brancas, soltaram as correntes e os tambores davam rufos abafados no ar diante do quartel imaginoso de Marajaitiba. O cortejo seguiria as ruas, assistido por populares revoltados e revoltosos a correr as calçadas conclamando os passantes a notícia: “Eles vão morrer e ninguém diz nada? Ninguém diz... NADA!” Diz, sim: Liberdade!“Te Deum”. “Te Deum”. “Te Deum”.
Demônios imperialistas, a sacudir postes e lampiões, corriam trilhas marcadas de sangue e ódio. Riam-se da loucura dos homens quão repetida em sua estrada de asfaltos. Subiam às árvores, zombavam de nós tão desgraçadamente violentados pela história e confortavelmente acomodados às cerimônias de beija-mão.
Homens rudes apontavam às viúvas, sinos repicavam despedidas e policiais, vestidos em montarias, guardavam o cortejo que se ia alegre de morte.Assim como a bárbara D. Bárbara, do sítio Pau-Seco, o fez na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, o tristonho Tristão, feito Cristo quedo e varado à bala sob as poeiras duma jurema preta, emergia às sacadas do Sobrado Dr. José Lourenço a denunciar a loucura de todos nós na voz mansa de um Poeta de Meia-Tigela, um misto de Diógenes de Sínope e São Miguel Arcanjo. Outros poetas, escritores, atores, pintores e fotógrafos contemplavam a agonia carnavalizada, a marcha derradeira, a suprema violência do poder de direito, a inconteste agrura de ousar-lhes o pensamento. Na praça-coração, narizes curiosos se amontoavam, perguntavam quem eram aqueles, o que era aquilo? “É isso que é o ‘Fortal’, é?” “É não, abestado, não está vendo que é drama?”
O Bumba-meu-boi, enfurecido, bailava a rebolar as suas fitas de cores de ressurreição... No cortejo seguiam também o Maracatu Az de Ouro, a Capoeira do Mestre Índio, o Reisado de Nossa Senhora das Dores, a Quadrilha do Zé Testinha, os batuqueiros da Caravana Cultural, os índios Pitaguary, a Escola de Samba Independentes da Bela Vista, ao passo que bacamartes lentos se desfaziam em caretas confirmando a dificuldade de se segurar um povo quando se une: Liberdade!
No caminho, crianças metálicas do Vale do Rio Salamanca refletiam o desenlace final, o futuro da covardia, o sem-futuro, a miséria do cárcere coletivo.
Um moço magro, Oficial de Ordenanças, seguia à frente da escolta. Clamava o respeito e não permitia o amor, pois o sabia: não iria ser amado: “Viva o Rei?” “Não, vivas o escambau!”No Campo da Pólvora do Passeio Público, finalmente, a noite assomava luminosa nas frondes das árvores. Exaltados gritavam “Liberdade!” numa noite quente.
Um a um, os independistas são chamados ao fuzil. O Padre recusa a venda, coloca a mão ao peito e aponta para o povo atônito ao seu redor: “Camaradas, os alvos são estes!”. Preparar... apontar... atirar... fogo, FOGO! — um holofote incendeia, a produção apaga. — Com o tiro, dedos debulhados semeiam a terra, e dela, fértil, nasce um baobá de raízes silenciosas e imensas. Nossas raízes... silenciosas... imensas!A artilharia queixa-se entre mosquetes, salvas de canhões e o massacre continua: “Diz pára! Diz pára!”. Os corpos rebeldes caem como folhas (clichê bonito...) no chão. A vida se vai guiada por girândolas a estourar nos céus da praça, por si, de Mártires. Os famintos vira-latas de todos nós se deliciam com saborosos miolos cheios de idéias revolucionárias vertidos nas areias.
Então, a cidade inteira, toda ela, se viu em negro... era o luto pela liberdade, mas só a Ana, Triste, ficou: Liberdade! Cortejo Confederado: evento comemorativo do Dia Estadual do Patrimônio Cultural,30 de julho, realizado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, com a participação de atores e grupos culturais repetindo o trajeto feito, em 1825, pelo membros da Confederação do Equador e que culminou com o fuzilamento no Passeio Público. O Cortejo teve a direção de Oswald Barroso, textos do Poeta de Meia-Tigela e a participação de atores, dentre os quais, Ary Sherlock.
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Raymundo Netto é autor do romance “Um Conto no Passado: cadeiras na calçada”.
Contato: raymundo.netto@uol.com.br
Blogue: http://raymundo-netto.blogspot.com/
Fotos de Raymundo Netto
2 Comentários:
Grande espetáculo em Fortaleza! Grande artido do Raymundo Netto. Uma honra para o Suaveolens publicar!
Foi maravilhoso poder ter participado desse momento incrível!!!!
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