Suaveolens

Este blog foi criado por um cearense apaixonado por plantas medicinais e por sua terra natal. O título Suaveolens é uma homenagem a Hyptis suaveolens uma planta medicinal e cheirosa chamada Bamburral no Ceará, e Hortelã do Mato em Brasília. Consultora Técnica: VANESSA DA SILVA MATTOS

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Local: Brasília, Distrito Federal, Brazil

Cearense, nascido em Fortaleza, no Ceará. Criado em Ipueiras, no mesmo estado até os oito anos. Foi universitário de agronomia em Fortaleza e em Recife. Formou-se em Pernambuco, na Universidade Rural. Obteve o título de Mestre em Microbiologia dos Solos pelo Instituto de Micologia da Universidade Federal de Pernambuco. Também obteve o Mestrado e o Doutorado em Fitopatologia pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisador colaborador da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília.

15.1.17

SOMBRA, FRUTA E TRAMPOLIM

Fotos do acervo do autor: acima, o "Falso Cinamomo" (Melia azedarach) e abaixo, a Acerola (Malpighia glabra). 

SOMBRA, FRUTA E TRAMPOLIM
Por
Jean Kleber Mattos

Ipueiras, Ceará, fins dos anos quarenta. A linha da minha arraia enroscou-se numa jovem carnaubeira que existia em frente à Coletoria Municipal de “seo” Juarez Catunda, na Praça da Matriz. As carnaubeiras jovens são atarracadas e agressivas, muito espinhentas. Os pecíolos das folhas são muito adensados impedindo a escalada. As carnaubeiras velhas são altas e esguias. Elegantes mesmo. E não são agressivas. Dá para escalar. Chapéus, cestas, bolsas, cobertura de casa, caibros, vigas, quase tudo pode ser feito com partes dessa planta. Sem falar na famosa cera da palha que já foi importante produto de exportação. Terra de artistas, a palhinha do Domingo de Ramos quase sempre transformava-se numa singela cruz e, às vezes, num artefato mais elaborado, nas mãos habilidosas dos fiéis. E quem não cavalgou em cavalinhos feitos com o pecíolo da folha da carnaubeira? A polpa do fruto maduro, pretinho, é uma delícia.
Ao início dos anos cinqüenta, quem andasse em Ipueiras saindo da esquina do Educandário na Praça da Avenida numa rua de chão batido, no sentido da Praça do Cristo, encontraria uma grota, seguida de uma leve subida. À direita via-se um grande pé de tamarindo. À esquerda ficavam as mutambas. Mutamba tem gosto de vinho. Minha mãe, D. Mundita, receava que eu comesse a fruta:
-Prende o intestino! Dizia ela.
Além da mutamba, o croatá e o camapú, ou “canapum”, estavam na lista das proibidas. Consumidas em segredo.
Acho o tamarindo uma das frutas mais interessantes. Há muito tempo é vendida nas farmácias. Geléia para prisão de ventre. Ótima pra crianças. Comíamos “in natura”, no pé. Maduro ou verde. Até a folha é saborosa. Azedinha. Frota Neto, em seu livro QUASE, relata que o quintal de “seo” Abdul e D. Mocinha eram cheios de tamarindos. Na Praça do Cristo havia um enorme pé de joá, ao lado de uma residência sem reboco. Tijolo nu. Frutinhas amarelas saborosas. A raspa da casca do tronco é “shampoo”. Faz espuma. Também serve como dentifrício. Outra fruta que eu gostava de provar era o trapiá. É molinho. Havia um pé em minha casa. No galinheiro. Ao entardecer, as galinhas empoleiravam-se nele. Estava sempre sujo de titica.
Cajueiros e mangueiras, só nos sítios. Visitamos um deles, um dia. O dono tinha fama de sovina, mas era um cara muito legal. Falou para minha avó:
-Fique à vontade. Encontrando um fruto ao alcance da mão, não faça cerimônia. Pode apanhar.   
Meu pai, gozador contumaz, logo segredou ao ouvido da sogra:
-Ouviu bem, né? Ao alcance da mão...não vale pular!
Divertido torrar castanhas de caju num taxo de ferro sobre uma “trempe” de tijolos. Volta e meia uma delas se inflama e “voa” em meio a um jato incandescente. E a banana couruda? Renato Braga, grande botânico cearense, menciona a resistência e a flexibilidade da casca da banana couruda e acentua: “pode ser amassada até que a polpa fique reduzida a uma pasta mole capaz de ser consumida por sucção”. Era exatamente assim que a consumíamos. Hoje nas grandes cidades, via de regra, come-se cozida ou na forma de doces. 
Laranjas, coco-babaçu, jacas e abacates vinham da serra. “Seo” José Fernandes, sitiante amigo nosso, volta e meia nos brindava com um “surrão” de laranjas. Lembram do “surrão’? O “container” caipira feito com palha de carnaúba? Pois lá estava ele, cheio de laranjas “doces como mel”.  Eu gostava do coco-babaçu. Minha tia Francisquinha, irmã de “seo” Mattos, meu pai, o trazia quando vinha da serra. Não me lembro de ter comido qualquer quitute feito com ele. Era consumo “in natura” mesmo! Gostava de cuspir o bagaço seco sobre um formigueiro para ver as formigas carregarem. O ramo serrano de nossa família notabilizou-se pelo consumismo de abacate. Delícia. Da serra também vinham as novidades: cambucá, pequenas amoras e o doce de buriti. Precisa-se falar nas rapaduras? E aquelas molinhas, de coco? Ou de mamão? A gente chamava “tijolo”. Caroço de jaca cozido era um de meus quitutes favoritos, além da polpa madura. Os cajás eram perfumados. Lembro-me que o jovem Zaca, que trabalhava lá em casa, fazia carimbos entalhando a casca solta das cajazeiras. Madeira mole.
A primeira grande árvore que eu vi em Ipueiras foi o benjamim. O nome certo é “Ficus benjamina”, minha avó me ensinou. Ficava defronte de nossa primeira residência em Ipueiras. A casa de “seo” Hermógenes. Casa grande. Meu pai alugou. Foi a primeira sede do Educandário. Localizava-se em frente à casa de “seo” Pedro Aragão, quase na Praça da Matriz. Éramos vizinhos de “seo” Camaral, pai da Darci e da Lielete. Eu gostava de mascar as folhas do benjamim. Os meninos maiores haviam aprendido a produzir um assobio forte apertando as folhas contra os lábios e soprando.Uma dessas folhas entre dois pedaços de casca de árvore, como num sanduíche, virava um instrumento musical de sopro. Som de cigarra. Na casa de Pedro Aragão, o benjamim era cerca viva. Eu ficava admirado com a tosa. Homens com tesouras enormes, mantendo a forma da cerca. Se bem me lembro, um deles era “seo” Gustavo, pai do Zacarias, um amigo meu de infância.  
À semelhança do benjamim, algumas árvores nada produziam que se pudesse comer. Eram apenas urbanísticas. Uma delas me encantou desde o primeiro encontro. Foi o cinamomo, Melia azedarach. Havia um pé no Grupo Escolar onde minha mãe dava aulas. Pequenas flores brancas com o centro roxo. Cheirosas. Descobri bem mais tarde que a planta é tóxica. O fruto amarelo fica meio enrugado quando amadurece. É menor que uma azeitona. Depois conheci a munguba. A inflorescência imatura parece um charuto. No formato e na cor. Simulávamos que a estávamos fumando. Quando a flor se abre é só beleza. Centenas de longos estames dão ao conjunto o aspecto de um belo e colorido espanador. As sementes de munguba são comestíveis, mas não tínhamos tradição de consumo.
Lembro dos jardins. Havia dois que eram externos e bem visíveis e dos quais me lembro de modo especial. O de Dolores Aragão, esposa do Pedro e mãe do Carlos e o jardim de D. Adaísa, esposa do Wencery e mãe do Marcondes, da Solange e do Walmir. O primeiro, protegido por uma cerca viva de benjamim, impactava pela beleza das rosas que o dominavam quase exclusivamente. O segundo, mais intimista, contrastava com o tom azul da casa. Era mais variado e mais denso. Além das rosas lembro-me dos aspargos decorativos, adorno quase obrigatório nos altares das cerimônias escolares de coroação da virgem. 
E as oiticicas? Ao descrever um banho no rio Jatobá, falei que o mesmo transcorria à sombra de grandes arvores. Ao comentar o texto, o cronista Walmir Rosa lembrou que as oiticicas da beira do rio eram trampolins naturais para a meninada de Ipueiras. Beleza! O valor da oiticica, no passado, advinha das sementes, ricas em óleo próprio para tintas e vernizes. Meu pai contava a história de um moço que trabalhava no armazém de meu tio-avô, Sebastião Matos. O rapaz queixava-se de prisão de ventre. O médico local, com certeza doutor Melquíades, descobriu que, pela manhã, para não comer o pão “sem nada” ele às vezes besuntava um pouco de óleo de oiticica. Dizia que “dava gosto”. Comercialmente, o produto é conhecido como “óleo secativo”. O resultado não podia ser outro...
Nossas plantas também ofertavam matéria prima para enfeites e brinquedos. Terços, carrapetas, colares e brincos. Que menina não usou um colar de sementes de “Cássia”? Ou um adereço de “Conta-de-lágrima”? Quem lembra de umas bolinhas negras chamadas “sabonete”? Ótimas para fazer colar e também malabarismo, equilibrando-as no ar com o sopro. E as sementes e frutos anemófilos? Estes são levadas pelo vento. Têm a paina que lhes dá leveza ou o “design” que lhes permite planar. Frutos de pajeú descem da árvore planando. Era uma festa brincar com eles. Para nós, em nossa fantasia, eram brinquedos preciosos: paraquedas e helicópteros!

Visitando a cidade de Ipueiras recentemente, já idoso, constatei que dentre as árvores de minha infância, praticamente não se encontram mais Ficus benjamina nem Melia azedarach. O cenário atualizou-se. Nos quintais destaca-se a fruta Acerola (Malpighia glabra) e nas praças e avenidas, a planta urbanística Nim (Azadirachta indica). Do passado porém, permanece nos quintais a deliciosa Ciriguela (Spondias purpurea)

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1 Comentários:

Anonymous Heloisa Helena Amaral disse...

Achei a crônica maravilhosa. Ela faz a gente voltar à época da infância e da adolescência quando a víamos nos quintais árvores frutíferas e floridas e curtia-se isso, experimentando a fruta no próprio pé. Apanhavam-se flores para brincar ou enfeitar a casa. Isso ficou um pouco esquecido e a crônica nos trouxe de volta o desejo de observar a paisagem procurando nelas as árvores com as quais convivemos no passado. Parabéns Jean Kleber.

16.1.17  

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