Fotos do acervo do autor: acima, o "Falso Cinamomo" (Melia azedarach) e abaixo, a Acerola (Malpighia glabra).
SOMBRA, FRUTA
E TRAMPOLIM
Por
Jean Kleber
Mattos
Ipueiras, Ceará, fins dos anos
quarenta. A linha da minha arraia enroscou-se numa jovem carnaubeira que
existia em frente à Coletoria Municipal de “seo” Juarez Catunda, na Praça da
Matriz. As carnaubeiras jovens são atarracadas e agressivas, muito espinhentas.
Os pecíolos das folhas são muito adensados impedindo a escalada. As
carnaubeiras velhas são altas e esguias. Elegantes mesmo. E não são agressivas.
Dá para escalar. Chapéus, cestas, bolsas, cobertura de casa, caibros, vigas,
quase tudo pode ser feito com partes dessa planta. Sem falar na famosa cera da
palha que já foi importante produto de exportação. Terra de artistas, a
palhinha do Domingo de Ramos quase sempre transformava-se numa singela cruz e,
às vezes, num artefato mais elaborado, nas mãos habilidosas dos fiéis. E quem
não cavalgou em cavalinhos feitos com o pecíolo da folha da carnaubeira? A
polpa do fruto maduro, pretinho, é uma delícia.
Ao início dos
anos cinqüenta, quem andasse em Ipueiras saindo da esquina do Educandário na
Praça da Avenida numa rua de chão batido, no sentido da Praça do Cristo, encontraria
uma grota, seguida de uma leve subida. À direita via-se um grande pé de tamarindo.
À esquerda ficavam as mutambas. Mutamba tem gosto de vinho. Minha mãe, D.
Mundita, receava que eu comesse a fruta:
-Prende o
intestino! Dizia ela.
Além da
mutamba, o croatá e o camapú, ou “canapum”, estavam na lista das proibidas. Consumidas
em segredo.
Acho o
tamarindo uma das frutas mais interessantes. Há muito tempo é vendida nas
farmácias. Geléia para prisão de ventre. Ótima pra crianças. Comíamos “in
natura”, no pé. Maduro ou verde. Até a folha é saborosa. Azedinha. Frota Neto, em
seu livro QUASE, relata que o quintal de “seo” Abdul e D. Mocinha eram cheios
de tamarindos. Na Praça do Cristo havia um enorme pé de joá, ao lado de uma
residência sem reboco. Tijolo nu. Frutinhas amarelas saborosas. A raspa da
casca do tronco é “shampoo”. Faz espuma. Também serve como dentifrício. Outra
fruta que eu gostava de provar era o trapiá. É molinho. Havia um pé em minha
casa. No galinheiro. Ao entardecer, as galinhas empoleiravam-se nele. Estava
sempre sujo de titica.
Cajueiros e
mangueiras, só nos sítios. Visitamos um deles, um dia. O dono tinha fama de
sovina, mas era um cara muito legal. Falou para minha avó:
-Fique à
vontade. Encontrando um fruto ao alcance da mão, não faça cerimônia. Pode
apanhar.
Meu pai, gozador
contumaz, logo segredou ao ouvido da sogra:
-Ouviu bem,
né? Ao alcance da mão...não vale pular!
Divertido
torrar castanhas de caju num taxo de ferro sobre uma “trempe” de tijolos. Volta e meia
uma delas se inflama e “voa” em meio a um jato incandescente. E a banana
couruda? Renato Braga, grande botânico cearense, menciona a resistência e a flexibilidade
da casca da banana couruda e acentua: “pode ser amassada até que a polpa fique
reduzida a uma pasta mole capaz de ser consumida por sucção”. Era exatamente assim
que a consumíamos. Hoje nas grandes cidades, via de regra, come-se cozida ou na
forma de doces.
Laranjas,
coco-babaçu, jacas e abacates vinham da serra. “Seo” José Fernandes, sitiante
amigo nosso, volta e meia nos brindava com um “surrão” de laranjas. Lembram do
“surrão’? O “container” caipira feito com palha de carnaúba? Pois lá estava
ele, cheio de laranjas “doces como mel”.
Eu gostava do coco-babaçu. Minha tia Francisquinha, irmã de “seo”
Mattos, meu pai, o trazia quando vinha da serra. Não me lembro de ter comido
qualquer quitute feito com ele. Era consumo “in natura” mesmo! Gostava de cuspir
o bagaço seco sobre um formigueiro para ver as formigas carregarem. O ramo
serrano de nossa família notabilizou-se pelo consumismo de abacate. Delícia. Da
serra também vinham as novidades: cambucá, pequenas amoras e o doce de buriti.
Precisa-se falar nas rapaduras? E aquelas molinhas, de coco? Ou de mamão? A
gente chamava “tijolo”. Caroço de jaca cozido era um de meus quitutes favoritos,
além da polpa madura. Os cajás eram perfumados. Lembro-me que o jovem Zaca, que
trabalhava lá em casa, fazia carimbos entalhando a casca solta das cajazeiras.
Madeira mole.
A primeira
grande árvore que eu vi em Ipueiras foi o benjamim. O nome certo é “Ficus
benjamina”, minha avó me ensinou. Ficava defronte de nossa primeira residência
em Ipueiras. A casa de “seo” Hermógenes. Casa grande. Meu pai alugou. Foi a
primeira sede do Educandário. Localizava-se em frente à casa de “seo” Pedro
Aragão, quase na Praça da Matriz. Éramos vizinhos de “seo” Camaral, pai da
Darci e da Lielete. Eu gostava de mascar as folhas do benjamim. Os meninos
maiores haviam aprendido a produzir um assobio forte apertando as folhas contra
os lábios e soprando.Uma dessas folhas entre dois pedaços de casca de árvore,
como num sanduíche, virava um instrumento musical de sopro. Som de cigarra. Na
casa de Pedro Aragão, o benjamim era cerca viva. Eu ficava admirado com a tosa.
Homens com tesouras enormes, mantendo a forma da cerca. Se bem me lembro, um
deles era “seo” Gustavo, pai do Zacarias, um amigo meu de infância.
À semelhança
do benjamim, algumas árvores nada produziam que se pudesse comer. Eram apenas
urbanísticas. Uma delas me encantou desde o primeiro encontro. Foi o cinamomo, Melia azedarach. Havia um pé no Grupo Escolar onde minha mãe dava
aulas. Pequenas flores brancas com o centro roxo. Cheirosas. Descobri bem mais
tarde que a planta é tóxica. O fruto amarelo fica meio enrugado quando
amadurece. É menor que uma azeitona. Depois conheci a munguba. A inflorescência
imatura parece um charuto. No formato e na cor. Simulávamos que a estávamos
fumando. Quando a flor se abre é só beleza. Centenas de longos estames dão ao
conjunto o aspecto de um belo e colorido espanador. As sementes de munguba são
comestíveis, mas não tínhamos tradição de consumo.
Lembro dos
jardins. Havia dois que eram externos e bem visíveis e dos quais me lembro de
modo especial. O de Dolores Aragão, esposa do Pedro e mãe do Carlos e o jardim
de D. Adaísa, esposa do Wencery e mãe do Marcondes, da Solange e do Walmir. O
primeiro, protegido por uma cerca viva de benjamim, impactava pela beleza das
rosas que o dominavam quase exclusivamente. O segundo, mais intimista,
contrastava com o tom azul da casa. Era mais variado e mais denso. Além das rosas
lembro-me dos aspargos decorativos, adorno quase obrigatório nos altares das cerimônias
escolares de coroação da virgem.
E as
oiticicas? Ao descrever um banho no rio Jatobá, falei que o mesmo transcorria à
sombra de grandes arvores. Ao comentar o texto, o cronista Walmir Rosa lembrou
que as oiticicas da beira do rio eram trampolins naturais para a meninada de
Ipueiras. Beleza! O valor da oiticica, no passado, advinha das sementes, ricas
em óleo próprio para tintas e vernizes. Meu pai contava a história de um moço
que trabalhava no armazém de meu tio-avô, Sebastião Matos. O rapaz queixava-se
de prisão de ventre. O médico local, com certeza doutor Melquíades, descobriu
que, pela manhã, para não comer o pão “sem nada” ele às vezes besuntava um
pouco de óleo de oiticica. Dizia que “dava gosto”. Comercialmente, o produto é
conhecido como “óleo secativo”. O resultado não podia ser outro...
Nossas plantas
também ofertavam matéria prima para enfeites e brinquedos. Terços, carrapetas,
colares e brincos. Que menina não usou um colar de sementes de “Cássia”? Ou um
adereço de “Conta-de-lágrima”? Quem lembra de umas bolinhas negras chamadas
“sabonete”? Ótimas para fazer colar e também malabarismo, equilibrando-as no ar
com o sopro. E as sementes e frutos anemófilos? Estes são levadas pelo vento.
Têm a paina que lhes dá leveza ou o “design” que lhes permite planar. Frutos de
pajeú descem da árvore planando. Era uma festa brincar com eles. Para nós, em
nossa fantasia, eram brinquedos preciosos: paraquedas e helicópteros!
Visitando a
cidade de Ipueiras recentemente, já idoso, constatei que dentre as árvores de
minha infância, praticamente não se encontram mais Ficus benjamina nem Melia azedarach. O cenário atualizou-se. Nos quintais destaca-se a fruta Acerola (Malpighia
glabra) e nas praças e avenidas, a planta urbanística Nim
(Azadirachta indica). Do passado porém, permanece nos
quintais a deliciosa Ciriguela (Spondias purpurea).
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1 Comentários:
Achei a crônica maravilhosa. Ela faz a gente voltar à época da infância e da adolescência quando a víamos nos quintais árvores frutíferas e floridas e curtia-se isso, experimentando a fruta no próprio pé. Apanhavam-se flores para brincar ou enfeitar a casa. Isso ficou um pouco esquecido e a crônica nos trouxe de volta o desejo de observar a paisagem procurando nelas as árvores com as quais convivemos no passado. Parabéns Jean Kleber.
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